Turismo de esquerda: teoria e prática

Na Ilha Robben

9 de janeiro de 2005. TEORIA — Meu humorista de direita favorito, o americano P.J. O’Rourke, certa vez embarcou, só de sarro, num cruzeiro de comunistas americanos pelo rio Volga. Era o auge da guerra fria e a União Soviética ainda posava de superpotência. O cruzeiro dos comunas americanos fazia paradas não em vilarejos românticos ou igrejas históricas, mas em grandes hidrelétricas e em outros exemplos bem – perdão – concretos da eficiência soviética. Foi quando P.J. teve uma iluminação que mudaria o rumo da sua carreira. Se a vida real estava repleta de coisas hilariantes como cruzeiros de comunistas americanos por hidrelétricas do rio Volga, ele não precisaria mais se esfolar para inventar coisas engraçadas do nada. Bastava descobrir onde essas coisas engraçadas estavam acontecendo, ir até lá e simplesmente voltar com o relato debaixo do braço.

Mas não, nem toda viagem de esquerda encerra as possibilidades humorísticas de um cruzeiro de comunistas americanos pelo Volga.

A essência do turismo bem-intencionado pode ser encontrada in natura em guias como o Lonely Planet. Hoje em dia a série está um pouquinho mais relaxada, mas ainda assim continua sendo a melhor fonte de informação para quem não se contenta em apenas visitar um país pobre, mas quer também sentir na pele o que é viver sem ar condicionado, chuveiro e privada. O sujeito deixa para trás a sociedade de consumo e viaja para consumir toda a pobreza que o seu dinheiro puder comprar.

A vertente mais xiita do mochilismo encara a privação de conforto como algo tão interessante quanto (ou mais interessante do que) o destino que se está visitando. Em “Video night in Kathmandu”, Pico Iyer – um de meus escritores de viagem de cabeceira – descreve os diálogos que entreouvia num café natureba na Freak Street, o ponto de encontro dos hippies no Nepal. Cada maluco tinha uma história de horror para contar –pânico e acessos de vômito num ônibus lotado serpenteando pelos precipícios do Tibete; semanas sem banho em pensõezinhas fétidas; comidas amorfas que causaram diarréias inenarráveis. Todos contavam suas histórias com entusiasmo e orgulho, como se disputassem um campeonato do qual sairia vencedor quem tivesse se ferrado mais. Ainda não está claro como isso pode melhorar as condições de vida no planeta – mas certamente esse tipo de viajante ajuda a pagar o karma dos que viajam só para ficar no bem-bom.

Paul Theroux, certamente o mais celebrado travel writer vivo, tem ojeriza a tudo aquilo que possa ser chamado de ‘atração turística’. Para ele as únicas coisas interessantes que acontecem numa viagem se passam dentro da cabeça do viajante. Se você espremer bem Theroux, você vai ver que as coisas só acontecem na cabeça do viajante enquanto ele é submetido a atrasos, imprevistos, mal-entendidos e desapontamentos; nada de aproveitável acontece na cabeça do viajante quando ele está tomando sol na espreguiçadeira à beira da piscina num hotel cinco estrelas e o garçom chega com o balde de champanhe.

Bom. Em princípio eu não tenho nada contra férias ensolaradas a bordo de espreguiçadeiras e movidas a champanhe. Mas ninguém não precisa ser nenhum Paul Theroux para perceber que não há muito apelo jornalístico nessas viagens. É difícil relatar experiências assim sem cair em exibicionismo nem atrair olho-gordo.

Este, por sinal, é o melhor efeito colateral das viagens para destinos desprovidos de glamour: ninguém inveja. Além do mais, viajar para paises mais pobres que o seu pode elevar o seu moral. Meu amigo Newton Bento, grande filósofo do qual o mundo ainda ouvirá falar, disse que nunca gostou tanto de São Paulo quanto depois que passou uma semana em Cuba. Pela primeira vez depois de umas férias no exterior ele não se sentiu chegando num lugar miserável ao desembarcar de volta na Marginal do Tietê.

Até há pouco tempo existiam duas maneiras, absolutamente inconciliáveis, de se visitar um país mais pobre do que o seu. Ou você: (a) partia para vivenciar a pobreza, ou: (b) aproveitava para lavar a égua, dando-se a luxos que você não teria como sustentar na sua própria casa. Hoje, entretanto, já dá para: (c) fazer um pouquinho de cada, mais ou menos ao mesmo tempo. Os caras vêm, tiram você do ar-condicionado do seu hotel e… põem você no ar-condicionado de uma van. E então você sai para um breve porém edificante passeio pela vida real.

PRÁTICA parte 1: Na favela

Eram 8h30 da manhã de um dia perfeito de verão: nenhuma nuvem no céu, e nadinha daquele vento que às vezes estraga dias perfeitos de verão na Cidade do Cabo. Mas em vez de subir à Table Mountain ou de ir à praia – duas coisas que ainda não tínhamos feito –, nós reservamos dois lugares numa van para ir conhecer uma township, como são chamadas as favelas sul-africanas. Precisar, não precisa – mas se você quer entender a África do Sul, o passeio funciona como um curso intensivo.

Bo Kaap

A primeira parada é ainda dentro da cidade – muito perto, aliás, de onde estamos hospedados. O Bo Kaap (Altos do Cabo) é um bairro exclusivamente muçulmano, habitado por descendentes de escravos malaios e indianos. Sua ocupação começou em 1834, quando a coroa britânica tomou o poder dos africâners (holandeses) e aboliu a escravatura. Hoje as casas valorizaram muito, e quem mora aqui é a elite dos malaios-do-Cabo (comerciantes, em sua maioria). Toda vez que há alguma coisa a comemorar na família – nascimento, casamento, formatura – os bo-kaapenses pintam a fachada de casa com alguma cor berrante, sempre constrastando com a cor berrante pintada anteriormente. Lembra do Carnaval dos Menestréis, daquele outro post? Pois o ponto final dos desfiles é aqui. (Por sinal, descobri o porquê do banjo, dos instrumentos de sopro e até mesmo do desfile: tudo isso foi incorporado ao carnaval deles depois da chegada de um cargueiro de New Orleans.)

No Museu do District Six

A segunda parada é numa região desolada e baldia onde até a metade do século passado havia o bairro mais vibrante da Cidade do Cabo, o District Six (Bairro Seis), reduto de ex-escravos negros e mestiços, geralmente cristãos. (Ao contrário do que eu escrevi em outro post, 50% dos escravos eram negros, sim – trazidos, porém, de outros lugares da África; os negros nativos nunca foram escravizados, mas de todo modo a maioria acabou morrendo em guerras ou epidemias.) O District Six era a Lapa da Cidade do Cabo: o bairro dos artistas, da boemia, da malandragem. Mais do que isso, o District Six era um dos pouquíssimos bairros multi-raciais da África do Sul. Em 1948, quando os africâners retomaram o poder e implementaram o apartheid, o governo declarou o District Six “zona residencial branca”. Em quinze anos, 60.000 negros e mestiços foram evacuados, com requintes de crueldade, para as townships, e suas casas foram inapelavelmente postas abaixo. As igrejas, no entanto, não foram demolidas (os donos do apartheid eram carolas), e os negros e mestiços – até mesmo em sinal de protesto – continuaram freqüentando suas paróquias. Com isso, nenhum branco quis se mudar para cá – e hoje o bairro é uma imensa terra arrasada. Mas não por muito tempo mais. Com o advento da democracia, antigos moradores se organizaram e criaram o Museu do District Six – uma exposição de marejar os olhos com fotos, jornais, músicas e relíquias do bairro. No chão do museu foi desenhado um mapa (veja a foto) onde os ex-moradores puderam escrever seus nomes na exata posição de suas casas. Uma comissão de notáveis foi formada para examinar todos os casos – e hoje, dez anos depois do fim do apartheid, já começam a ser construídas as primeiras casas a serem devolvidas aos desterrados. Não é emocionante? Pois se eu tivesse ido à praia, você não ficaria sabendo nada disso.

Repetindo a trajetória dos evacuados, saímos do District Six com destino a três townships: duas antigas – uma habitada por coloureds, outra por negros – e uma relativamente nova (iniciada em 1983) e imensa (com um milhão de habitantes), chamada Khayelitsha.

Em Kayelitscha

A parte central de uma township não passa de um bairro pobre, habitado por gente remediada que foi transplantada à força do centro da cidade pelas leis de zoneamento racial do apartheid. A favela propriamente dita – onde moram os imigrantes mais recentes e/ou menos qualificados – fica na periferia da township. Por mais chocante que seja ver as nossas favelas no arrabalde de bairros ricos, é mais chocante ainda ver as favelas deles, no arrabalde de bairros pobres, em lugares desolados que o governo escolheu e cercou para os miseráveis morarem.

É tudo muito árido e triste, com pouquíssimo comércio. Mesmo nos pontos mais bonitinhos e fotografáveis não dá para sentir a energia que você percebe nas nossas favelas mais, digamos, prósperas. Talvez seja uma questão apenas de geografia – as favelas daqui estão numa região plana e arenosa, sem mato em volta, sem encosta de morro, sem vista. Pode ser também a arquitetura – os barracos são todos térreos, não se constrói nada na laje, não há escadarias ou labirintos. O fato é que não consegui sair de Khayelitsha com a sensação positiva com que saí da Rocinha (onde fiz um tour parecido) ou da favela de Ramos (em pleno Complexo do Alemão) onde fui pegar minha fantasia da Imperatriz Leopoldinense. À primeira vista, ser rico na África do Sul parece ser melhor do que ser rico no Brasil. Mas ser pobre no Brasil parece ser beeeem mais interessante do que ser pobre na África do Sul.

Em Khayelitsha

(Querendo passar um tempinho por aqui, você pode se hospedar no Bed & Breakfast da Vicky – custa 230 rand, ou 115 reais, por pessoa, com ar condicionado, café da manhã e jantar).

PRÁTICA parte 2: Na prisão

A ilha Robben (‘das focas’, em holandês) já passou por várias encarnações. Primeiro foi usada como leprosário; na Segunda Guerra, virou base militar. Com a implantação do apartheid, foi transformada em prisão de segurança máxima para condenados por crimes politicos; Nelson Mandela, seu ocupante mais famoso, viveu aqui por 27 anos. A prisão foi desativada e hoje a ilha Robben virou um museu – destino do passeio mais politicamente correto do país.

A Cidade do Cabo vista da ilha Robben

Você pega um catamarã nas docas do Waterfront e, 25 minutos depois, desembarca na ilhazinha. O passeio já valeria pela vista – a Table Mountain à distância fica ainda mais impressionante. Os primeiros 45 minutos em terra são passados dentro de um ônibus, com uma guia explicando cada um dos prédios da ilha e contando pequenas histórias de horror político e racial. A primeira parte é OK. Mas a segunda é sensacional: você desce do ônibus e é levado para um tour pela prisão, guiado por um… ex-preso político. Eu não estava preparado (se você for, desculpe, estraguei sua surpresa), e por isso me senti saindo de um passeio turístico para entrar num documentário. Mr. Temba – o “nosso” preso politico – era filiado ao mesmo Congresso Nacional Africano de Mandela. Depois de dar seu depoimento por uns quinze minutos, ele abriu para uma sessão de perguntas. Lá pelas tantas, uma inglesa vestindo uma bata africana perguntou como ele via o que o seu partido estava fazendo no governo. Mr. Temba foi polido, mas deu para notar que ele acha do CNA no governo mais ou menos o que a senadora Heloísa Helena acha do PT no governo.

Na prisão: um guia que conhecia BEM o lugar

No final, fomos levados para conhecer a ala e a cela onde Mandela ficou preso, enquanto os alto-falantes tocavam uma gravação a capella feita por ex-presos políticos e que virou uma espécie de hino no país. A música ainda ecoava nos meus ouvidos enquanto o catamarã se aproximava das docas e o sol se escondia atrás da Table Mountain.

PRÁTICA parte 3: No táxi

“O senhor é parente de Paulo Freire?”, me perguntou o motorista de táxi que veio nos pegar na pousada para nos levar a Franschhoek, na região vinícola do Cabo Ocidental. Como assim, Paulo Freire? Que eu soubesse, política era assunto de ontem. Hoje o cardápio previa um passeio por estradas panorâmicas na região dos vinhedos, duas sessões de degustação de vinhos e uma tarde à beira da piscina de nossa pousada em Franschhoek.

Mr. Aubrey, nosso motorista, era praticamente um intelectual. Admirava o trabalho de Paulo Freire por seu sucesso na alfabetização de sul-africanos negros. Dedicava seu tempo livre a investigar sua árvore genealógica (faltava-lhe descobrir por que sua bisavó materna foi a única escrava a não ser alforriada em vida pelo patrão). Perguntou se eu já tinha ido atrás da minha árvore genealógica, e eu falei que não, no Brasil a gente não vai atrás disso – sobretudo negros e mulatos. Expliquei que no Brasil alguns assuntos não se conversam. Que a gente não teria coragem de inventar um negócio como esse passeio à ilha Robben – e, se inventasse, não faria o mínimo sucesso.

Ele deveria me contar sobre a colonização francesa, alemã e holandesa na região dos vinhedos, sobre como eles exportam vinhos para a Inglaterra desde o século XVIII, sobre a evolução dos vinhos sul-africanos desde o fim do apartheid. Mas eu é que acabei lhe contando sobre Salvador, sobre o sincretismo católico-iorubá, sobre nossos réveillons de branco à beira do mar. E quando vi, já estávamos em Franschhoek, uma cidade de uma rua só, com mais restaurantes do que casas, no centro de um vale deslumbrante.

Em Franschhoek, na região dos vinhedos

Instalados na pousada, fomos direto para a piscina. Às cinco horas, serviram o chá. Eu não sei o que Paul Theroux diria numa hora dessas, mas à beira da piscina, tomando chá, só me ocorreu o óbvio: de fato, este é um lugar que a Provence escolheria para recomeçar a vida bem longe de casa.

Hospedar-se nesta região é caro, mas os vinhos são baratos – e, de um tempo para cá, ficaram ótimos, também. Durante pelo menos um século, a legislação sul-africana determinou o tipo de uva que podia ser plantado e quais processos podiam ser usados na fabricação do vinho. Depois do apartheid essas leis caíram, e só então a indústria vinícola sul-africana pôde se modernizar, mudar as uvas plantadas e experimentar novos blends. Como resultado, os vinhos do país começam agora a ganhar novos mercados.

Mas isso quem nos contou não foi o Aubrey, nosso taxista mulato intelectual. Foi o John, um branquelão com jeito de redneck americano que nos levou ao aeroporto no dia seguinte – arrumando assunto para não precisar conversar a respeito dos quilômetros e mais quilômetros de muros que tentam, mas não conseguem, esconder o favelão de Kayelitsha dos carros que passam pela auto-estrada.

15 comentários

Olá Ricardo, muito bom o post, parabéns!! Fiquei interessada em fazer o passeio na township… você fez com guia? Pode indicar a agência que contratou?

Surpreendeu-me este texto! Quando a gente viaja, é isto que a gente procura.
Tira a ilusão de aqui é bom, lá é ruim, ou vice/versa.

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