Percebi (minha crônica no Divirta-se do Estadão)

Ilustração: Daniel KondoIlustração | Daniel Kondo

Há quase trinta anos, na estação central de Zurique, eu estava comendo um pão com salsicha, de pé (era o que o meu orçamento de mochileiro permitia), quando me dei conta de que aqueles dois operários iugoslavos que comiam pão com salsicha e conversavam animadamente em servo-croata na mesinha ao lado…. ahn…. não eram sérvios nem croatas, e tampouco falavam alguma língua eslava: eram portugueses.

Não ria. O fato de um brasileiro com formação universitária não reconhecer à primeira ouvida a matriz castiça da sua língua materna não é engraçado: é trágico. Um brasileiro em Portugal leva mais sustos com o vocabulário do que em Buenos Aires: nosso portunhol é mais afiado que nosso português luso.

Passei agorinha vinte dias corridos em Portugal e voltei apaixonado pela sonoridade do português de verdade. O que até então era apenas um fetiche de contornos humorísticos agora se transformou numa admiração genuína.

Cruzei o país de carro, com o rádio sintonizado numa rádio de notícias – e finalmente parece que consegui perceber (ou p’r’cber) o que há por baixo daquela língua que, do lado de cá do oceano, soa como se fosse escrita em cirílico.

Não, o português de Portugal não é só uma maçaroca de vogais engolidas. É, sim, uma maçaroca de vogais engolidas, mas quando você presta atenção, nota aqui e ali uma vogal inesperadament aberta. É um “vócês”, um “diréção”… minha diversão na estrada era tentar definir um padrão. Descobri que uma consoante muda abre o “é” e alonga o “a” que vêm antes dela. Na próxima viagem descubro qual é a do “ó”.

O mais impressionante é que é muito difícil falar como eles falam – colocar todos aqueles pronomes em todos aqueles lugares, escolher aquelas palavras que eles escolhem. E no entanto tudo soa natural. Aqui não ia dar certo nunca, claro – o português do Brasil perderia completamente a dinâmica se a gente acreditasse de verdade em gramática, sintaxe, regência e concordância –, mas que é lindo de ouvir, ah é.

Pelo certo, deveríamos nos sentir tão humilhados por um português de Portugal bem falado quanto um americano fica quando ouve um inglês padrão BBC. P’rcebe?

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36 comentários

Ah pois… sim, aqui se usa “pois”, “giro”, “fixe” e “bue de fixe” mas, isto e giria, assim como tambem o sao “so”, “bacana”, “legal”

Moro em Portugal ja faz 10 anos e garanto que e so uma questao de habito, quase melodica… Atualmente amo e defendo os 2 lados do atlantico… O portugues e uma lingua belissima, deve se manter UNICA e, para acabar com os desafetos linguisticos, acho q os 2 lados deveriam era se preocupar em corrigir os “ERROS HORROROSOS” de gramatica e pronuncia que cometem.

No mais, e so uma questao de ambientaçao com o “sotaque” e “expressões populares”.

O melhor exemplo da consistencia da lingua portuguesa sao os livros do Jose Saramago publicados no Brasil e que mantem o texto original portugues.

Se, no Brasil ha que se respeitar e admirar a bossa poetica que os brasileiros conseguem extrair da lingua portuguesa, em Portugal ha que se reverenciar o bom uso da gramatica.

Voltei agorinha de Lisboa, completamente apaixonada! Também sintonizava todas as noites nas notícias e comecei a adorar o português português. Acho que eles “trocam” o som do “E” pelo “A”, algo como “varmalho” em vez de vermelho…
Agora um causo:

Meu filho que talvez precisasse ficar mais uma noite foi no Residencial na Pca dos Restauradores ver o preço de um quarto (não sabíamos se era tipo albergue ou hotel). Uma senhorinha nos atendeu, disse o preço e ele perguntou: – E o quarto é só para mim?
Resposta: -Claro que é só para si, queria que fosse para todos?

Amei! A luz de Lisboa, aquele ar de cidade antiga. A gastronomia fantástica, povo acolhedor, transporte amigável… voltei querendo mais!

Oi. Como meus pais são portugueses, nunca achei difícil o português de Portugal. Mas falar com minha prima que mora em Lisboa pelo telefone, e esta me passar seu “email” (assim mesmo com o a bem aberto), foi uma tarefa quase que impossível! Hahaha

Posso contar uma de português, que aconteceu de verdade mesmo, com minha mãe em Lisboa ano passado?
Ela foi no mercadinho comprar umas frutas. Viu uns pêssegos bonitos, e perguntou pra dona da venda: “Os pêssegos estão docinhos?”
E a portuguesa respondeu: “Ora, como posso s’ber, se não os comi todos”…

Quando voltei de Portugal, depois de 1 ano, vim com essa sensação e essa vontade de falar o mais correto, por mais banal e informal que seja uma conversa. O português deles é lindo. Parece que se está recitando Camões todo o tempo. É refinado. Bonito mesmo! E diferente, sim. Demorei um tempo pra me adaptar com o português deles. E ainda mais pra me adaptar com o nosso brasileiro na volta!

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