Pulando de carnaval em carnaval

Pulando de carnaval em carnaval (uma epopéia carnavalesca vintage)

Recife, Rio e Salvador, Carnaval de 1999

Em 1999, vivi o mais viajandão dos carnavais: inventei de pular no Rio, no Recife e em Salvador no mesmo ano. Nesses 18 anos, muita coisa mudou — no século passado o carnaval de rua do Rio se limitava a duas ou três bandas, e os camarotes em Salvador não passavam de… dois. Ivete Sangalo era a crooner da Banda Eva e ainda era Joãosinho Trinta, e não Paulo Barros, quem fazia diferença na Sapucaí. E eu ainda usava cabelos! (Recife-Olinda, por sua vez, não parecem ter mudado muito.) Originalmente publicado na VIP.

É possível estar em três lugares ao mesmo tempo? Desafiando uma lei elementar tanto da física quanto da educação física, este ano decidi realizar minha mais antiga fantasia de folião — ir ao Rio, a Salvador e ao Recife num mesmo carnaval. A idéia era comparar os três maiores carnavais do Brasil da maneira mais objetiva que existe: fazendo um test-drive do modelo 99 de cada um deles. Qual a diferença entre desfilar no Sambódromo, subir as ladeiras de Olinda e tirar o pé do chão na Praça Castro Alves? Em quatro dias eu saberia o que uma pessoa em pleno uso de seu juízo levaria pelo menos três anos para descobrir.

Para revestir a pesquisa de algum rigor metodológico, segui o exemplo da Liga das Escolas de Samba e elaborei minha própria lista de quesitos. Em cada um dos carnavais eu teria que avaliar, se possível num estágio semelhante de sobriedade: 1. a animação (de uma a cinco estrelas na escala Ziriguidum); 2. o espaço (para o folião brincar); 3. o tempo pulado (porcentagem do tempo em que você efetivamente chacoalha o esqueleto); 4. a azaração (possibilidade de se dar bem); 5. o custo (para entrar no carnaval — sem contar passagem nem hotel); 6. a velocidade etílica (quantas l/h — latinhas por hora?).

Isto feito, o passo seguinte foi montar a ordem dos desfiles — que, apesar de geograficamente incorreta, é a que fazia mais sentido carnavalesco:

  • sábado de manhã no Recife, para o Galo da Madrugada;
  • sábado ao anoitecer em Olinda;
  • domingo no Rio, para assistir ao desfile e sair numa escola;
  • segunda e terça em Salvador (o único carnaval que eu ainda não conhecia)

Antes de qualquer coisa, preciso advertir o leitor que, para cumprir esse roteiro, o sujeito não pode ser bom da cabeça — e, depois de emendar frevo, samba e trio elétrico, fatalmente acaba doente do pé. Nada, porém, que não se resolva com um bom estoque de guaraná em pó, Neosaldina, Engov, Merthiolate e Band-Aid.

Sexta-feira: São Paulo-Recife

Amanheço no aeroporto, pronto para iniciar minha excursão pinga-pinga ao país do carnaval. Abro os jornais e levo um choque — Rafael Greca teve a mesma idéia que eu! O portentoso ministro do Turismo faria concorrência a Momo nos três carnavais aonde eu ia, e em mais um: Florianópolis. Mas as semelhanças acabavam aí. Enquanto a folia itinerante do ministro se resumiria a um entra-e-sai de jatinhos, carros oficiais e palanques chapa-branca, meu carnaval peripatético tinha se tornado uma operação de guerra, envolvendo amigos, colegas de trabalho, a iniciativa privada e o submundo da contravenção em três Estados diferentes.

No Recife, dona Elenita, mãe de meu amigo Paulo André, já deveria estar às voltas com o sururu e a dobradinha que restaurariam minhas forças no dia seguinte, na volta do Galo da Madrugada. No Rio, um motoboy iria até a Tijuca apanhar a fantasia do Salgueiro que eu comprei pela Internet e que deveria ser deixada em Botafogo, nos escritórios da Conspiração Filmes — onde ela ficaria esperando por mim até uma reunião de trabalho providencialmente marcada para o domingo de carnaval. Em Salvador, se tudo estivesse nos conformes, Reginaldo, o cambista de mortalhas que uma amiga baiana me arranjou na última hora, viajaria até Itapoã e entregaria meu abadá do bloco Beijo nas mãos de Beth Nunes, gerente do Sofitel (que tinha se comprometido por fax a guardar a muamba a sete chaves até a minha chegada, na segunda-feira). Ainda na Bahia, uma colega tentava agitar um convite para o camarote de Daniela Mercury, enquanto outro amigo batalhava para que eu desfilasse em cima do trio da Banda Eva, no dia da despedida de Ivete Sangalo. De garantido, na verdade, só mesmo o ingresso para a mesa de pista do Sambódromo, também comprado pela Internet, e que tinha chegado dois dias antes por Sedex.

Eu sei como você se sente: eu também estava exausto só de pensar.

Eram 11 da manhã em São Paulo (10h no Recife) quando pedi minha primeira cerveja de carnaval à aeromoça da TAM. O carrinho ainda estava arrumado com as térmicas e os sucos do café da manhã, e outra comissária precisou ser destacada para ir lá dentro catar uma latinha. Constrangido, tive vontade de explicar que no dia seguinte, a essa hora, eu já estaria frevando no Galo, e por isso precisava adiantar o fuso horário do meu organismo para a metabolização de fermentados — mas se nem você, que está acompanhando os propósitos estritamente científicos desta empreitada, acreditou nisso, imagine ela.

Cheguei ao Recife (pronuncia-se Ricífi) a tempo de uma caminhada na areia fofa da praia, preparando as pernas para a maratona dos próximos dias. Nas barracas perto dos hotéis, aqui e ali, alemães avulsos, totalmente alheios ao carnaval, tomavam sol ao lado de garotas praticantes de uma modalidade extremamente íntima de turismo receptivo. À noite, umTaxista de Cristo me levou, com o rádio devidamente sintonizado numa AM evangélica, ao pré-carnavalesco de Boa Viagem. Ganhei uma filipeta de ensinamentos bíblicos ao desembarcar, e talvez por isso tenha alcançado a Iluminação duas quadras adiante, ao ler, numa plaquinha vermelha de madeira, uma inscrição de extraordinário conteúdo metafísico — CERVEJA: 3 É 2.

Sábado de manhã: Recife

Tradicionalmente, o Galo da Madrugada é o primeiro grande evento do carnaval brasileiro. Por mais que alguns lugares (incluindo o próprio Recife) tentem antecipar o início dos trabalhos, o certo é que o país só entra em estado de carnaval depois que assiste na TV à mesma tomada aérea de sempre: o centro da cidade invadido por mais de um milhão de pessoas, e uma voz familiar ao fundo dizendo “Francisco José, do Recife, para o Jornal Hoje”.

O que aquela gente toda está fazendo nesse formigueiro? Pulando carnaval? Não: entrando no Guinness. Todos os anos, a população inteira do Recife comparece pessoalmente e ainda leva os vizinhos, com o objetivo expresso de quebrar o recorde de público do Galo anterior. “O maior bloco de carnaval do mundo”, proclamam os jornais. Com efeito: o domingo e a segunda-feira são do Rio, terça só dá Salvador, e mesmo nos outros dias as estrelas do carnaval pernambucano são os bonecos de Olinda — mas no sábado quem reina é o Recife.

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Se alguém pedir minha opinião, no entanto, vou dizer que a graça de sair no Galo não está em ajudar a engordar as estatísticas. O genial do Galo da Madrugada é fazer você acordar cedo para pular carnaval. Tomar café pensando em carnaval. Ver gente fantasiada na rua às oito da manhã. Encontrar sua turma às 8 e meia. E, o mais imprescindível de tudo: chegar antes das 10 e pegar o comecinho do desfile.

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Quem pega o Galo no início, ainda no bairro de São José — muito antes de haver quórum que justifique um boletim ao vivo do helicóptero da Globo — encontra o bem mais raro do carnaval: espaço para pular. Como eu vim a descobrir nesses quatro dias, pular carnaval no Brasil é muito parecido com ser empurrado para dentro de um vagão do metrô de Tóquio na hora do rush. Mas o começo do Galo é uma exceção: você ainda tem seu espaçozinho para brincar, e mesmo para tentar aprender um ou outro passo do frevo. (Acredite: a três Schincariol por R$ 2, até você consegue frevar.)

Lá pelo meio-dia, quando a sua seção do Galo entra na rua da Concórdia, ocorre um fenômeno curioso: o seu protetor solar perde o efeito, desponta a primeira bolha dentro do seu All Star, e você tem a nítida sensação de que o desodorante de todo mundo à sua volta venceu. Daí você tenta enxugar o suor de uma sobrancelha, e só então percebe que sua mão direita está imobilizada ao redor de uma latinha que não contém mais cerveja, mas que serve de amortecedor entre o seu peito e as costas de uma camiseta amarela onde se lê a palavra ROMÁRIO. Nesse momento você desconfia que chegou a hora de desistir de entrar no Guinness e resolve ir pegar uma praia, porque o carnaval é uma criança e à tarde ainda tem Olinda.

Sábado ao entardecer: Olinda

Com as forças restabelecidas pelo caldinho de sururu, pela dobradinha, pela carne-de-sol, pela macaxeira e pelo jerimum de dona Elenita, e com o pé devidamente acolchoado por Band-Aids, lá fui eu para a segunda estação da minha via sacra carnavalesca.

Olinda (pronuncia-se Oh!linda) é o cenário mais bonito que alguém já mandou construir para um baile de carnaval. As casinhas coloridas já vêm fantasiadas (de Brasil Colonial), e os moradores — uma mistura de gente simples, artistas e malucos-beleza — são foliões naturais. Junte-se a isso as orquestrinhas de frevo que sobem e descem as ladeiras carregando tubas, trombones e clarins, e você tem o carnaval mais encantador do país.

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Nas ruelas de Olinda são amplificadas todas as qualidades do carnaval de Pernambuco: a espontaneidade, a democracia, o amadorismo — a zona, mesmo. É o último carnaval “de esquerda”, em que ninguém paga nada para entrar, e onde você passa a maior parte do tempo a salvo de patrocínios e merchandisings. As pessoas ainda se fantasiam, muitas em blocos de três (os hits deste ano: DDDs e Tiazinhas). As meninas bonitas do Recife vêm “brincar” à tarde, e os turistas são definitivamente mais “cabeça” e menos “maurícios” do que os que vão a Salvador.

Para quem quer frevar no pé — ou, como se diz aqui, fazer o passo — a dica é a mesma do Galo: descobrir os blocos no início de seus desfiles, longe dos focos de aglomeração. Só assim você vai conseguir chegar perto dos metais e sentir o efeito de ouvir “Vassourinhas” em seu habitat natural. (Depois que o seu bloco passa por lugares movimentados, como o entroncamento dos Quatro Cantos, você acaba se distanciando da orquestra, não ouvindo mais nada e tendo que usar sua latinha como amortecedor entre o seu peito e as costas de uma camiseta qualquer com dizeres tipo ACESSÓRIOS PARA CELULAR.) Até o final do carnaval você vai ter aprendido a cantar o hino do Elefante (oh!linda/quero cantar/a ti/esta canção), que é de arrepiar, e a reconhecer o refrão dos metais de mais quatro ou cinco frevos de antologia.

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Entre a passagem de um bloco e outro, a coisa se acalma, e você fica livre para zanzar pelas ruelinhas, paquerar, ou ficar bebendo cerveja em frente aos botecos, ao som dos últimos sucessos da música baiana. MÚSICA BAIANA? Não, você não entendeu mal. Toda música mecânica que se ouve nos alto-falantes dos botecos de Olinda vem da Bahia: dê-lhe Timbalada, Netinho, Ara Ketu, Banda Eva. Os fundamentalistas costumam espumar contra esta “invasão estrangeira”, mas mesmo na folia esquerdista de Olinda o mercado acaba prevalecendo. Sem consumidores suficientes para justificar o investimento da indústria fonográfica (ao contrário do que acontece com o forró e o mangue-beat, seus conterrâneos), o frevo é uma música ameaçada de extinção. Isso confere tons ecológicos ao carnaval pernambucano: sair atrás de uma orquestra de metais em Olinda é como ir ver tartarugas marinhas em Fernando de Noronha.

A diferença é que Noronha limita o número de visitantes, e Olinda está a cada ano mais lotada. Para não me acusarem de contribuir para piorar a situação, encerro meu relato pernambucano fazendo propaganda do novo carnaval que vem se realizando nos bairros restaurados do Recife Antigo — não tive tempo de conferir, mas pelo que dizem é (quase) tão charmoso quanto a festa em Olinda.

Domingo: Rio de Janeiro

Além de ser um dos melhores lugares para se passar o carnaval, o Rio (pronuncia-se Ríiiu) é também, disparado, o melhor lugar para quem quer fugir completamente da folia. Primeiro, porque a população debanda — o que torna o Rio o único ponto de toda a costa brasileira que fica mais vazio entre o sábado de Zé Pereira e a quarta-feira de cinzas do que no resto do ano. Depois, porque enquanto no Recife ou em Salvador o carnaval persegue você dia e noite por toda parte, no Rio a festa tem local e horário definidos. Participar dela é uma decisão de foro íntimo, que depende inteiramente da sua iniciativa pessoal. Tanto assim, que chegar ao Rio em pleno domingo de carnaval é como chegar ao Rio em plena Bienal do Livro: você só fica sabendo do evento se abrir os jornais ou ligar a TV.

Graças a um atraso de duas horas e meia da Transbrasil, meu tempo em terra firme estava tão cronometrado quanto desfile de escola de samba. De cara, tive apenas 45 minutos para torturar os vizinhos de meu amigo Romildo (que me deixou as chaves de seu apartamento no Leblon) com a execução ininterrupta do samba-enredo do Salgueiro, faixa 7 do CD das escolas do grupo especial. Felizmente, deu para decorar o refrão — tanto eu quanto os vizinhos: “tem jangada no mar/mareia, meu amor/mareia…”. De lá saí atrasado para a Conspiração Filmes, em Botafogo, onde eu teria uma rápida reunião de trabalho (nas horas não-vagas eu sou publicitário) e pegaria minha fantasia, que eles gentilmente tinham mandado buscar na sede da ala Vai Sacudir, na Tijuca. Até então, tratava-se de uma fantasia virtual: eu tinha escolhido pela Internet, pago com DOC via home-banking e combinado os detalhes de entrega por e-mail. E agora ela estava ali, materializada do jeitinho que eu tinha visto no site (eu escolhi a fantasia que tinha menos plumas). Tudo muito asséptico, organizado, cibernético.

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Sinal dos tempos. A primeira vez que desfilei, em 1994, pela Imperatriz Leopoldinense, o processo ainda era todo analógico. Tive o privilégio de conseguir sair numa ala cuja dona era ninguém menos que a porta-bandeira Maria Helena, a grande estrela da escola e um dos mitos do carnaval carioca. Como a entrega atrasou, tivemos que ir em bando até a favela do Buraco Quente, no dia do desfile, buscar as fantasias onde elas estavam sendo confeccionadas: no próprio barraco da Maria Helena (algo como você ser figurante em “Central do Brasil” e ir buscar seu figurino na casa da Fernanda Montenegro). Maria Helena estava num mau humor do tamanho de um carro alegórico, tresnoitada por ter desfilado no dia anterior em São Paulo — e nada indicava que ela se recuperaria até à noite. Enquanto ela implicava com isso ou aquilo, um pequeno exército de parentes e vizinhos aplicava plumas e laminados nas fantasias, empesteando o ar de cola e nos fazendo sair de lá pré-doidões para o desfile. No final, Maria Helena esteve majestosa como sempre e a Imperatriz foi campeã.

Voltando a 1999: coloquei minha fantasia do Salgueiro no porta-malas, deixei o carro alugado num estacionamento mambembe a três quadras do Sambódromo (R$ 5 com portão fechado a chave; uma pechincha, pelos padrões paulistanos), e parti para meu primeiro desfile como espectador. No meio da noite eu sairia para pegar a fantasia no estacionamento, desfilar e ainda voltar à minha mesa no setor 5 para ver o resto do desfile. (Só depois de passar pela borboleta do Sambódromo é que eu notei a turistada deixando suas fantasias numa sala improvisada como guarda-volumes. Ou seja: toda a complexa operação fantasia/porta-malas/carro alugado/estacionamento poderia ter sido evitada.)

Quais as diferenças entre ver da mesa de pista e assistir pela TV? Uma coisa, infelizmente, é igual: a luz. Nas vezes em que desfilei eu nem tinha reparado nisso, mas foi só virar platéia para me dar conta de que era a primeira vez que eu via um mega-show iluminado por luz branca. Aqueles refletores de estádio podem ser ótimos para transmissões de jogo de futebol, mas não servem para iluminar espetáculos da Broadway. Joãozinho Trinta vem reclamando disso há anos, e por conta própria está instalando refletores de show em alguns carros alegóricos. Na verdade, a maior prova do talento dos carnavalescos é o fato de eles conseguirem fazer desfiles deslumbrantes apesar daquela luz de serão no escritório.

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Já o quesito destaques & celebridades fica muito mais interessante ao vivo do que na telinha. Localizar rostos (e corpos) conhecidos no meio do bololô é bem mais divertido do que receber aquelas pessoas prontas e editadas no enquadramento de sempre. A mesma coisa vale para as peladonas: soltas na avenida, em plano geral, elas são muito mais provocantes e transgressoras do que quando aprisionadas nos closes da TV. Não, não é uma vinheta globeleza: é o carnaval no Rio. Mas para mim nada supera a revelação do SOM. Assim, em maiúsculas, mesmo. Depois de uma vida inteira acompanhando o desfile pelos alto-falantes da TV da minha casa, só agora, assistindo na avenida, eu consegui perceber que as baterias tocam de maneira diferente em cada escola. Sim, cada bateria tem seu próprio baticum. Isto é incrível. Estou pasmo até agora.

Quem quer desfilar e depois voltar para o seu lugar precisa deixar que atarrachem uma fita vermelha apertadíssima no seu pulso. A fita é apertadíssima por dois motivos: 1) para você não conseguir passar a pulseira adiante para outra pessoa na avenida; 2) para testar a eficiência do serviço de assistência médica em casos agudos de gangrena.

Saí, fui até o estacionamento mambembe, vesti minha fantasia inteira pela primeira vez. Pois bem. Eu diria que a única vantagem de não ter mais mãe viva é poupar uma senhora distinta de ver fotos que provem que o seu filho um dia já saiu por aí de: legging amarelo; sunga verde-limão; botas de cano alto combinando com a sunga; camiseta verde, amarela e azul com uma estrelona de lantejoulas douradas no peito; um tucano empoleirado nas costas, de onde saem hastes flexíveis com pompons verdes e pompons amarelos; e um escudo azul com estrela dourada para ser empunhado pela mão direita. Muito prazer, Capitão América do Sul.

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Só que esse vem a ser o grande barato do desfile no Rio: fazer você se fantasiar de alguma coisa muito extravagante, e poder botar toda a culpa no carnavalesco da escola. Dali a pouco, na sua ala, você vai encontrar mais 150 na mesma situação constrangedora. Juntos, vocês vão esquecer que estão vestindo algo ridículo e vão cantar alguma coisa que tampouco vai fazer sentido, tipo “tem jangada no mar/mareia, meu amor/mareia”. (Mas o melhor é quando você já sai fantasiado de casa. Descer o elevador fantasiado, atravessar o saguão do hotel fantasiado, passar na roleta do metrô fantasiado, encontrar outros componentes com a sua fantasia ainda no vagão — tudo isso talvez seja mais divertido até do que desfilar.)

Tendo desfilado duas vezes pela Imperatriz, uma escola que sempre ganha o júri mas dificilmente ganha a arquibancada, sair no Salgueiro se revelou uma experiência totalmente diferente: a torcida levanta, canta junto, agita bandeirolas. Ali embaixo, na avenida, você tem 60 minutos para cumprir o seu papel — mezzo figurante de teatro rebolado, mezzo jogador de futebol em decisão de campeonato. Aproveite. Em nenhum outro grande palco do carnaval brasileiro você vai dispor de tanto espaço por tanto tempo. Enquanto a sua fantasia não começar a se desintegrar, você está livre para pular. A não ser que surja algum problema técnico — como aconteceu com a minha ala. Em ação, nossa fantasia de Capitão América do Sul se transformou num artefato bélico de alto impacto. Toda vez que alguém empreendia um movimento ousado — como atravessar a ala de um lado para o outro, fazer uma curva brusca ou ultrapassar um outro componente — fazia com que os tais pompons verdes e pompons amarelos ligados por hastes flexíveis às asas do tucano virassem verdadeiras boleadeiras de peão. Depois de levar umas três pomponzadas na cara (e distribuir outras tantas), resolvi não fazer de minha fantasia uma arma, e sambei na mesma longitude até o final da avenida.

De volta à mesa de pista, acompanhei as escolas restantes se sucederem uma igual à outra, feito capas de disco do Roberto Carlos. Os gringos das mesas próximas já tinham ido todos embora quando passou a escola que valeria a noite: a Viradouro — que claramente pertencia a uma outra categoria, quase justificando um ingresso à parte. Quando deixei a Sapucaí, perto das 6 da manhã, eu só pensava em duas coisas. Uma: por que não entregam logo a direção geral desse negócio para o Joãozinho Trinta? A outra: será que eu ia conseguir dar uma cochiladinha antes do vôo para Salvador?

Segunda e terça: Salvador

Bem-vindo ao Woodstock do Faustão.

Enquanto o Recife freva e o Rio desfila, Salvador (pronuncia-se Salvadô) se interna numa espécie de festival de rock, em que o rock se chama axé music. Durante quatro dias, todas, absolutamente todas as caras e bundas famosas da música pop baiana vão se apresentar para as massas, cantando em cima de caminhões. Salvador é a nossa Motown — uma Detroit que, em vez de fabricar música black e carros, produz música afro e trios elétricos.

Comece esquecendo tudo o que você aprendeu em velhos LPs do Caetano. Hoje em dia, atrás do trio elétrico só não vai quem não comprou seu abadá — um uniforme que custa entre R$ 300 e R$ 700, e dá direito a furar o cordão de isolamento de um determinado bloco. Quem não tem dinheiro vai de “pipoca”: fica plantado na calçada e assiste a um pedacinho do show de cada artista que passa. Não deixa de ser uma modalidade de distribuição de renda: você dá uma grana para a sua banda favorita, e ela se apresenta de graça para todo mundo com preparo físico para passar o dia inteiro imprensado na multidão. Finalmente, um ou dois andares acima da pipoca, em sacadas de apartamentos e camarotes temporários, ficam todos os que preferem assistir a tudo sem temer pelo destino de seus relógios.

Cheguei ao hotel sem ter dormido nada nas últimas 30 horas (acho que exagerei no guaraná em pó). Vesti o abadá — sim, ele estava lá, me esperando no hotel — e me mandei para o Campo Grande, onde o meu bloco, o Beijo, já devia estar se armando.

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Salvador tem dois circuitos de desfiles. No centro, entre o Campo Grande e a Praça Castro Alves, desfilam os blocos tradicionais, por ordem de antigüidade. Na praia, entre a Barra e Ondina, desfilam os blocos fundados de dez anos para cá. Cada bloco sai em dois ou três dias diferentes, e tanto os tradicionais quanto os novos sempre contratam grandes bandas. Essas bandas podem ser nomes de projeção nacional — Timbalada, Daniela Mercury, Olodum, Banda Eva, Chiclete com Banana, Netinho, Ara Ketu, É o Tchan — ou ser ídolos regionais com reputação de grandes animadores de trio, como Asas de Águia, Ricardo Chaves, Cátia Guimma, Jammil. Na segunda-feira o Beijo sairia com a Banda Beijo — que tem aquela menina Gil como vocalista (hit: “Peraê”). Nos desfiles de sábado (que eu perdi) e de terça, a atração era o Netinho.

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Acabei chegando cedo demais ao Campo Grande. Meu bloco demorou quatro latinhas, um acarajé e dois queijos de coalho para sair. Fiquei observando os abadás dos outros blocos — assim como o meu, quase todos pareciam uniforme de time de futebol: uma Holanda aqui, um Bragantino ali. De repente passaram vários meninos com uma camiseta igual, onde se lia nas costas: CORDEIRO. Fiquei intrigado. Quem seria Cordeiro? Um meia-esquerda do Bahia? Um juvenil do Fluminense de Feira que foi vendido ao PSV Eindhoven e já se naturalizou para disputar a Copa Européia pela seleção da Finlândia? Não. “Cordeiro”, descobri logo em seguida, é o nome do profissional que segura a corda do bloco e não deixa a pipoca invadir.

E a pipoca, você sabe, é o retrato do povo brasileiro: alegre, festeiro, paciente, pacífico — numa palavra, a-ter-ro-ri-zan-te.

O Beijo saiu, e minha primeira impressão foi que eu não estava usufruindo de um espaço condizente com os R$ 450 que eu tinha pago pelo abadá. Na minha ingenuidade de neófito, eu imaginava que do lado de dentro do cordão de isolamento o folião poderia se movimentar com mais facilidade do que Zinédine Zidane na área do Brasil. Nananinanina. Em alguns trechos do desfile, a única diferença entre você e a pipoca é o seu abadá. Você é uma pipoca oficial, uma pipoca de uniforme, uma pipoca com crachá. Não que isso incomode os desfilantes. Na verdade, a proximidade física de pessoas do sexo oposto com grana suficiente para estar ali apenas facilita a prática do esporte oficial do carnaval de Salvador: o beijo roubado. A todo momento espocam beijos hollywoodianos entre adolescentes que “ficam” 30 segundos, 45 segundos, um minuto — e se separam. Mas se você quiser só dançar, fique à vontade. Não importa quem esteja em cima do trio, nas próximas quatro horas você vai poder balançar ao som de todos os hits da música baiana, incluindo os das outras bandas. Os refrões mais fortes são precedidos do comando “SAI DO CHÃO!!!!”, e daí é como comemorar um gol. (Ao final do desfile a sensação é que o seu time ganhou de 150 a zero.)

Com tantos blocos saindo em locais e horários conflitantes, você precisa se organizar para aproveitar tudo o que o carnaval de Salvador tem a oferecer. Agora: se você tiver amigos influentes, então não esqueça de trazer agenda e secretária (um helicóptero também não iria mal). Na metade do desfile do Beijo, no centro, eu já estava atrasado para ver a o Crocodilo, o bloco de Daniela Mercury, que passaria na praia. Eu tinha convite para assistir ao Crocodilo do melhor ponto de observação possível: o próprio camarote de Daniela — onde políticos, socialites, artistas, patrocinadores e candidatos a patrocinadores são mantidos a salvo da fome e da sede por Lícia Fábio. (Lícia é uma espécie de chefe informal do cerimonial da Bahia. Se você só tiver direito a conhecer uma pessoa em Salvador, trate de preencher sua cota com Lícia Fábio.)

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Devo admitir que a primeira vez que me acenaram com o convite eu achei esquisitíssimo. Eu não queria “assistir de camarote”: eu queriapular o carnaval. Mas eu ainda não tinha me dado conta de que o carnaval na Bahia é muito mais que uma sessão de aeróbica — é um festival de música pop. E a melhor maneira de assistir a todos os shows é, sim, em cima de um camarote — onde, por sinal, você vai estar na mesma altura do artista se apresentando no trio. Acabei perdendo o show de Daniela, mas vi de pertinho as duas Sheilas Perez. E adorei o trio MPB de Margareth Menezes — com Elza Soares, Edson Cordeiro e Jair Rodrigues de convidados. Fiquei pensando: por que não um trio dos Paralamas? Um trio do Skank? Um trio do Lulu Santos?

E como mordomia pouca é bobagem, no dia seguinte meu amigo Pedro me ligou para dizer que sua namorada Karla tinha conseguido um lugar para mim (e para meu amigo Nick também) em cima do trio da Banda Eva. Era o último desfile de Ivete Sangalo como funcionária, antes de partir para o sonho do trio próprio, o Maderada. Você deve ter visto Ivete chorando na TV. Eu vi ali, em cima do trio. Vi também Ivete olhando e acenando para a pipoca em todas as direções. Vi três adolescentes na janela de um prédio terem uma crise de choro histérico porque Ivete estava olhando para o outro lado da rua quando o trio passou por elas. Vi Ivete parar tudo e dizer: “eu não sou melhor que vocês, não. Eu sou melhor com vocês”. Uma gracinha, Ivete Sangalo. E pensar que no ano que vem ela vai fazer sucesso em outro trio — e a gente muito provavelmente vai babar também por Emanuelle Araújo, sua sucessora no Eva. Vou contar uma coisa para vocês: se o futebol brasileiro tivesse a competência e a vitalidade da indústria do carnaval da Bahia, não só todos os nossos ídolos continuariam jogando aqui, como a Copa do Mundo iria ser sempre no Brasil.

Depois de descer do Eva ainda saí no Beijo (você vai me desculpar, mas eu adoro Netinho), passei no camarote de Daniela Mercury e fui atrás do Crocodilo. Oito quadras mais tarde, quando Daniela cantou “Chuva, suor e cerveja”, dei por completa minha experiência baiana e fui pulando até o ponto de táxi.

Quarta-feira: Salvador-São Paulo

Pelo certo eu teria que acordar cedo e sair no Arrastão da Timbalada — uma invenção de Carlinhos Brown para você poder ir atrás dos trios elétricos sem ter investido num abadá. Mas não deu. Eu já tinha saído no Galo da Madrugada, já tinha saído em Olinda, já tinha saído no Salgueiro, já tinha saído no Beijo, na Banda Eva, no Crocodilo, na TAM, na Transbrasil e na Varig. Agora eu ia sair era na praia e pronto.

Na volta da praia, arrumando a mala, liguei a TV: estavam passando a apuração do julgamento das escolas no Rio. O Salgueiro caiu fora logo. Como você sabe, ganhou a Imperatriz — e o símbolo da festa acabou sendo Maria Helena, a porta-bandeira, chorando estrepitosamente para as câmeras. Comparei com o choro de Ivete Sangalo. Lembrei outra vez de 94, quando fui até o barraco da Maria Helena buscar minha fantasia. Fiquei com vontade de repetir o sururu de dona Elenita, no Recife, e de cantar o hino do Elefante de Olinda. Afinal, o que foi mais divertido? O carnaval de esquerda de Pernambuco? O mega-show do Rio, na platéia e no palco? Ou o Woodstock do Faustão em Salvador?

Não sei. De toda essa minha incansável pesquisa de campo, só consegui extrair uma verdade absolutamente científica, que vale tanto para quem gosta como para quem não gosta de carnaval:

Cerveja engorda.

61 comentários

Estou em 2023 e lendo seu texto refletindo sobre 1999 me divirto e despertam na minha memória as cenas que devem ter feito parte desta aventura. Que texto você tem !’ Maravilhoso !’ Parabéns !!

Ricardo, você é demais!
Agradeço por me ajudar tanto nas minhas viagens!

    Ah! meu querido guru tour, que delícia de relato. Viajei e brinquei nesse “seu” Carnaval. Me diverti em cada frase ,em casa perrengue e em cada risada, que não consegui segurar 🤭. Você é demais!!!!🥰🎉

Comandante eu estava lá no Interasa e no Camaleão nesse 1999… vi Ivete com Durval e demorei até 2005 p voltar pq em 2000 vendi meu abadá do Asa de águia e comprei uma Tv rs

Acordar na quarta-feira de cinzas, em Salvador, e ler este texto é “mara”. Emocionante ler a descrição do carnaval em 1999, a lista das nossas estrelas, pensar na trajetória de cada uma delas (algumas pessoas com mais sucesso, outras com mudança de área de atuação, como Emanuele Araújo). Infelizmente a festa em Salvador tornou-se um evento muito caro, tanto para o folião de bloco (os mais caros estão na faixa de R$ 800,00), como dos camarotes (R$ 3.000,00 por noite) e principalmente para o Estado e Município (8 dias + um final de semana anterior de festas com plantão de todas as equipes de segurança, limpeza, saúde). Atualmente a festa depende integralmente dos patrocínios e da consequente exclusividade no comércio de bebidas, etc. Inevitável.
Vejo com relativa inveja o crescimento da festa em São Paulo (meu filho e a namorada adoraram), Rio de Janeiro (meu irmão e esposa adoraram) e Belo Horizonte. Quem tem ido a estes três lugares fazem comparações minuciosas, avalizadas e Salvador está perdendo feio.
Mas, Xô baixo astral!

Apesar do texto ser de 1999, se você quiser aproveitar o Galo, tem que ser exatamente do jeito que Ricardo Freire escreveu, chegar cedinho para pegar ele ainda na concentração, assistir todos os carros passarem, seguir atrás do Asas de Águia, o mais animado, e depois sair atrás pulando e fazendo passo, e pular fora antes de entrar na Rua da Concórdia!

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