Minha crônica no Guia do Estadão de hoje.
É normal que cronistas se queixem de falta de assunto. Já o excesso de assunto não costuma render crônica. Ter muitos temas para abordar não é problema – a não ser que você só escreva de três em três semanas e seu espaço se restrinja a 2.400 caracteres. Ops, lá se foram 275.
O fato é que eu tinha planejado uma crônica redondinha, que misturava "Paris eu te amo", um filme-colcha-de-retalhos de vários cineastas sobre Paris, com "Bem-vindo a São Paulo", um filme-colcha-de-retalhos de vários cineastas sobre São Paulo.
Tarde demais, porém, descobri que "Paris eu te amo" é um filme bobinho e divertido, em que Paris atua mais como cenário do que como personagem, enquanto "Bem-vindo a São Paulo" é um filme bobinho e deprimente, em que São Paulo atua menos como personagem e mais como fator de indução ao suicídio.
Eu já temia pelo resultado da crônica, quando finalmente chegou uma boa notícia de Brasília. O governador José Roberto Arruda demitiu o gerúndio! Fiquei todo pimpão; desde 2001 estou na linha de frente contra o gerundismo. Um texto meu, intitulado "Para você estar passando adiante", circula até hoje pela internet – e foi parar na coletânea "Cem melhores crônicas brasileiras ", do Joaquim Ferreira dos Santos.
Pois eu vinha descendo (gerúndio liberado) a Angélica pela calçada da direita, imaginando (idem) um jeito de voltar ao assunto sem recorrer ao mesmo truque de gerundiar todas as frases, quando – epa, que negócio é esse?
Do outro lado da rua apareceu um prédio que eu nunca tinha visto. E o mais estranho: um prédio que nunca vai me ver. Um prédio sem janelas. Dezesseis andares sem nenhuma abertura para a Avenida Angélica. Seria uma resposta bobinha e deprimente à lei Cidade Limpa?
Fiquei pessoalmente ofendido de construírem na minha rua um prédio que se recusa a olhar para mim. Só então vi que não se tratava de um caso isolado. O edifício apenas reproduzia a proposta arquitetônica do Instituto de Depilação Vanessa, logo adiante; em vez de branco, porém, o instituto usa um verde-musgo que você não gostaria de ver nas unhas de ninguém.
Descendo um pouco mais a rua, um outro prédio-paredão – este, porém, vestindo um painel de Claudio Tozzi como a pedir desculpas por nos dar as costas. E mais outro, de paredão cinza-chumbo, que tinha passado despercebido por mim esses anos todos.
Prédios-burkas. Provavelmente à espera de um cineasta iraniano para fazer mais um episódio bobinho e deprimente de um filme-colcha-de-retalhos sobre São Paulo.
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