Instrumental

Minha crônica no Guia do Estadão de hoje.

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Acompanhando amigos, uma noite dessas fui assistir a um show de música instrumental. Pra quê? Eu sabia que não devia.

Vim de fábrica sem o gene que entende música desassociada de letra. A propósito, também não tenho o gene que gosta de poesia desassociada de melodia. Para mim, a música é o substrato que dá sentido ao texto escrito em forma de versos. Desculpaê.

Não é que eu não admire. Quando vejo um músico compenetrado com seu instrumento, sinto que estou perante uma manifestação extremamente positiva de autismo. Tocar um instrumento me parece uma forma não-mística e muito divertida de entrar em contato com uma energia superior. Mas vou precisar nascer de novo para entender isso direito.

(A propósito, na próxima encarnação quero ver se nasço sabendo escolher plano de celular, também.)

Para mim só existe uma coisa mais difícil do que assistir a um show de música instrumental: assistir a um show de música instrumental com canções cujas letras eu conheça.

É desesperador. Ei, você aí! Olha só: eu SEI a letra dessa música que você está floreando aí no piano! Quer fazer o favor de parar de fingir que essa música não tem letra?

Eu não consigo não cantar uma música cuja letra eu conheça. Fico de boca fechada, claro, mas canto. Meu cérebro faz coro com o clarinete, ajuda no backing vocal do oboé, faz chalalá pro sax. É mais forte do que eu.

No show a que eu fui assistir, a terceira canção tinha letra de Chico Buarque na vida real. Perdi a paciência na hora. Vem cá: como alguém pode tocar uma canção com letra de Chico Buarque sem a letra de Chico Buarque? Não faz sentido. Minha religião não permite.

Como se não bastasse, aconteceu o pior dos cenários. Meu cérebro estava alegremente a cantarolar o “Samba do Grande Amor” — hoje eu tenho apenas uma pedra no peito, exijo respeito, não sou mais um sonhador, chego a mudar de calçada aparece uma flor, e – me escapou. Não conseguia lembrar do verso seguinte.

Foi uma tortura. Entrava música, saía música, e eu tentava completar aquele verso. Chego a mudar de calçada… e nada. As letras das outras músicas que eu conhecia me confundiam ainda mais. Até que, um pouquinho antes do bis, lembrei. Ufa!

Precisei me controlar para não sair correndo pelo auditório a gritar o verso que eu tinha lembrado. E dou risada do grande amor. E dou risada do grande amor. E DOU RISADA DO GRANDE AMOR, CACILDA!

Custava contratar uma cantora?

23 comentários

Riq,

Lembrei muito de você agorinha. Acredita que depois de aparecer por aqui eu vi que ia ter apresentação do incrível Rildo Hora em homenagem a Caymmi? Pois então… Eu fui! E era instrumental! E foi maravilhoso porque Rildo pedia pra que a gente cantasse. 🙂 E eu que já não gosto, botei a boca no mundo. rs…

Riq,
aprende com meu professor de canto, exercício vocal com boca fechada, depois passar para o sem voz. rsrs

Riq,

Perfeito o segundo parágrafo da crônica, é exatamente como eu definiria meu gosto para poesia/música.Também acho que um complementa perfeitamente o outro.
Só faço ressalvas para música clássica e para o Focus,grupo holandês da década de 70, que tem belíssimas harmonias instrumentais.
Ah, e parabéns pela volta à casa antiga.
Abraços

Também não gosto de música instrumental. Mas gosto muito deste texto “Xonguiano”.
Bem que poderia ter mais destes textos por aqui, né?

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