In memoriam

Minha crônica no Guia do Estadão de hoje.

acentosEsta semana fez seis meses que o Brasil – de maneira unilateral – adotou a reforma ortográfica. Você provavelmente já se acostumou. Tudo o que na estreia parecia uma má ideia foi gradualmente absorvido. A falta de circunflexo em algumas palavrinhas já não lhe causa mais enjoo. E você já dorme tranquilo sem fazer questão daquele sinalzinho rastaquera, o trema.

Aviões caíram, a nova gripe se alastrou, os escândalos do Senado não param de pipocar, Michael Jackson morreu – ninguém mais tem tempo ou paciência para discutir acento diferencial e regra do hífen. Só os muito conservadores, muito saudosistas e muito pentelhos ficam lamentando o fim do acento agudo no tritongo aberto.

Presente!

Sim, eu sou um desses cricris que não se conformam e se vestem de preto e mandam rezar missa toda sexta-feira em memória do chapeuzinho de “voo”. E a rapidez com que todos os que estão à minha volta aceitam tudo isso só faz aumentar a minha depressão.

O que dói mais (com acento, felizmente) é o fato de todo esse quelelê (e aí? Pronuncia-se o “u” ou não?) ser absolutamente inútil. Os portugueses não vão aderir a esse acordo nem aqui nem em Macau.

Se para (preposição) nós a reforma é uma chateaçãozinha menor, para (preposição) os lusos é a última das humilhações. Pense bem: que moral temos eu e você, que não sabemos escrever sem o corretor do Word, para (preposição) obrigar os caras a aposentar de uma vez todas as consoantes mudas que eles escrevem no automático, sem nem pensar a respeito?

O acordo extingue uma das peculiaridades mais bonitas da ortografia lusa, que é o uso do acento agudo para diferenciar o presente (“gostamos”) do passado (“gostámos”). Não é que os portugueses apenas escrevam assim; eles falam assim também. Por que aceitariam tamanho empobrecimento?

Enquanto isso, nós aceitamos sem nenhuma resistência que, em pleno 2009, o português escrito por aqui ganhe mais um verbo defectivo. Refiro-me ao verbo “parar”, que já não se pode mais conjugar em várias situações. Eu paro, nós paramos, eles param – mas a gente interrompe, você freia e ele dá uma paradinha.

Devia ser como o serviço militar, de onde você pode escapar alegando objeção de consciência. Se a Bahia pode ficar de fora do horário de verão, por que eu não posso ficar de fora do acordo? Estou montando um dossiê. Em 2012, quando escrever do jeito antigo der cana, vou pedir asilo ortográfico à França.

39 comentários

Eu tenho sempre a mão um guia da nova ortografia. Mas preferia não depender dele e continuar escrevendo como aprendi. E o primeiro livro que li com a nova ortografia, li aos tropeços: cada vez que me deparava com “ideia” e afins, tropeçava, engasgava e tinha que voltar a frase inteira…

Sensacional a crônica, Riq, adorei!!

Riq, eu me solidarizo 100% Tenho inclusive ignorado o tal acordo muitas vezes, lá no Boa Vida, e por enquanto ninguém me prendeu. 🙂
Pelo menos alguém ergue a bandeira dos insatisfeitos, obrigada!

Não sei se vocês já tiveram a chance de perceber na prática que há um efeito colateral gravíssimo a esse “desacordo”. As pessoas não têm a menor noção de quais palavras “deveriam” ser escritas como uma única, sem hífen, ou de quais acentos caíram. Só pra ilustrar, já ouvi dois casos cômicos (tragicômicos, a bem dizer): que agora Ibéria não teria mais acento (?!?) e que “de repente” deveria ser escrito junto(?!?) Com a beleza de sistema educacional que temos no Brasil, não gosto nem de imaginar as conseqüências…

Comunico a todos que a partir dessa crônica não estou nem aí pra escrever “errado” (segundo a nova ortografia). Sou mais um que escreverá segundo as normas anteriores à reforma. (na verdade eu só precisava desse “impulsinho”!)

Seremos dois asilados na França (puxa, que potencial pra se escrever!)

    tô nessa. MOVIMENTO CONTRA O DESACORDO!! Ou então: deixe-me escrever como escrevo e basta…

É como eu sempre digo (e repito – não fosse conservadora, saudosista e pentelha… 😆 ), antes alguns poucos sabiam escrever bem em português. Agora ninguém mais sabe… Por isso, eu continuo escrevendo do mesmo jeito de sempre, e faço a maior questão de colocar todos os acentos, tremas e hífens. Dou uma atençãozinha especial àqueles que dizem que não existem mais… :mrgreen:

Carimbo de aprovado pela Avivixe! E apoiado, aliás. Mas fico me perguntando se o Riq seria menos xiita caso não tivesse de lidar tanto com a palavra “voo”? 😉

Que fantástico! Genial! Além de esclarecedor – acabei de perceber que ando acentuando coisas que caíram de moda. Muito difícil acompanhar o #desacordo de longe….

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