Minha crônica no Guia do Estadão de hoje.
[caption id="attachment_6132" align="aligncenter" width="400" caption="De sacola e cuia, feira Tristán Narvaja"][/caption]
O sujeito pegou o meu passaporte. Olhou para a minha cara para ver se conferia com a foto. Voltou a examinar o documento, como que procurando alguma coisa errada. Então me encarou e fez a última pergunta que eu esperaria ouvir fora do Brasil, num posto de fronteira entre dois outros países:
- Gremista?
O agente era uruguaio, mas tecnicamente ainda estávamos em território argentino. Para ser exato, no terminal de embarque da Buquebus, uma das duas empresas que operam a travessia do Rio da Prata entre Buenos Aires e Colonia del Sacramento. Para facilitar os trâmites, cada país mantém um posto de imigração avançado na outra margem do rio.
Na saída em Buenos Aires, o agente argentino confere a identificação, dá sua carimbada e repassa o cartão de entrada para o colega, ao lado. O uruguaio confere de novo e, pelo jeito, procura o lugar onde você nasceu para perguntar o seu time antes de carimbar.
Eu sou colorado, e ainda assim naquele momento me senti muito bem-vindo ao Uruguai. Achei que tinha sido alvo de uma deferência de vizinho. Não me passou pela cabeça que ele pudesse variar a pergunta – “Flamenguista?”, “Palmeirense?” – conforme o local de nascimento do passageiro.
Uruguai e Rio Grande do Sul são dois lados de um país que não existe. Uma espécie de Alemanha que não se lembra quando se dividiu. Uma Coréia que nunca vai conseguir se juntar de novo.
O Uruguai é um Rio Grande que deu errado – e por isso parece ser tão melhor. No fim de semana, perambulando por Montevidéu, várias vezes me senti perdido: que parte é essa de Porto Alegre por onde eu nunca passei antes?
Enquanto Buenos Aires não se cansa de arrotar Europa, Montevidéu se assume gaucha. Carne e mate são tratados com a necessária reverência. Sentado ao balcão de um restaurante do Mercado del Puerto você assiste ao “asador” pousar cada corte de carne num ponto determinado da grelha inclinada, como se estivesse escrevendo uma partitura.
Na feira dominical de Tristán Narvaja (onde se vende de alface a antigüidades, passando por coelhinhos vivos) você descobre que o corpo humano do uruguaio é composto por cabeça, tronco, membros e garrafa térmica. O tórax vem com encaixe anatômico para o cilindro de alumínio. O uruguaio consegue fazer qualquer coisa – feira, por exemplo – sem largar a cuia de chimarrão.
E é incrível como, juntos, tenhamos dado tantos nomes à MPB. Lupi, Elis, Calcanhotto. E agora... Jorge Drexler.
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