Em Monte Koya, dormindo com os monges

Monte Koya, cemitério budista

6 de fevereiro de 2005. São oito da manhã e não tomamos banho. Nem vamos tomar. O banheiro de tomar banho só abre das 4 da tarde às 9 da noite. Tomamos o nosso ontem à noite. Não havia outros hóspedes, nem mesmo japoneses, mas ainda assim seguimos o protocolo do banho público japonês à risca. Pegar um banquinho. Sentar no banquinho. Abrir o chuveirinho. Espalhar água pelo corpo. Fechar o chuveirinho. Ensaboar o corpo. Acionar o chuveirinho novamente. Lavar-se até não sobrar mais nenhum resquício de sabonete no corpo. E só então entrar na grande banheira de ofurô. A gente, pelado; a água, pelando. (Desculpe. Não resisti.) Se o banheiro estivesse aberto agora de manhã, teríamos repetido a dose? Provavelmente, não. Faz muito frio. 5º negativos? 8º negativos? O mosteiro não tem calefação. O caminho do quarto até o banheiro de tomar banho é longo e gelado. No outro banheiro – o banheiro de ir ao banheiro – a única fonte de calor é o assento térmico da privada. Não, obrigado: o próximo banho vai ser em Kyoto, mesmo. Preferimos ficar aqui, encapotados, engorrados, enluvados e encachecolados, passeando pelas alamedas daquele que dizem ser o mais bonito cemitério budista do Japão.

Monte Koya: cemitério budista
A alameda principal do cemitério de Koya-san tem dois quilômetros e leva a Okuno-in – o templo onde Kobo Daishi, o fundador da seita budista Shingon, está enterrado. Enterrado, não: acredita-se que Kobo Daishi não tenha morrido, mas que se encontre em estado permanente de meditação. Além de Kobo Daishi, que está neste endereço desde o século IX, aqui estão enterrados os budistas mais poderosos do Japão. Alguns dos mausoléus têm portais e esculturas; outros ostentam murais de madeira escritos de cima a baixo. A bruma da manhã e as árvores altas dão um ar místico que eu já conhecia de fotos – e que a neve só faz acentuar. Poderíamos ficar aqui a manhã inteira – mas se a gente perder o ônibus das 8h44 para a estação, não vamos conseguir chegar a Kyoto antes do meio-dia.

Monte Koya: cemitério budista
Como é que a gente veio parar aqui, mesmo? Ah, sim. Era junho do ano passado. Eu estava na Internet, em busca de um ryokan (hotel tradicional japonês) em Kyoto que coubesse no meu orçamento. Foi quando eu topei com o site da Japanese Guest Houses, uma pequena central de reservas em ryokans tocada por um americano. O site, completo e facílimo de navegar, traz descrições e fotos de ryokans de várias faixas de preço em 100 cidadezinhas espalhadas pelo país. Você escolhe seus ryokans, preenche um formulário, e o tal do americano cuida de tudo. De repente, abriu-se para mim a possibilidade de conseguir hospedagem em ryokans de cidades fora do circuito básico, em que o processo de reserva só é feito por fax ou telefone – e em japonês, obviamente. Um desses lugares é Monte Koya, ou Koya-san, um vilarejo a duas horas de Osaka que é a capital espiritual da seita budista Shingon – fundada, como você já sabe, por Kobo Daishi, que continua em estado permanente de meditação em seu mausoléu no templo Okuno-in. Koya-san tem mais de 100 mosteiros; muitos deles, veja só, aceitam hóspedes. Além de dormir no mosteiro, o hóspede experimenta a cozinha (vegetariana) dos monges e participa das orações ao amanhecer. Sair do fuzuê de Tóquio direto para um oásis zen-budista na montanha me pareceu um movimento perfeito, que valia sacrificar um dos dias em Kyoto. (Depois acabei arranjando uma outra cidadezinha simpática para conhecer, Takayama, e Kyoto virou uma reles parada de 24 horas.)

A viagem até aqui foi um pequeno épico japonês. Amanhecemos no Terminal 1 do aeroporto de Narita (!) para depositar As Duas Malonas no guarda-volumes e poder viajar light de trem. Do aeroporto pegamos um trem para a estação Tokyo, então um trem-bala até Shin-Osaka, daí um metrô até a estação Nanba, seguido de uma troca de estações a pé (tipo 10 minutos) para então pegar um trem superlento até Gokurakubashi, onde finalmente tomamos o funicular até Koya-san. Cansou? Imagine se a gente estivesse com As Duas Malonas (a Preta, com as roupas de verão, suadas pelo calor da Cidade do Cabo, de Cingapura e de Sydney; e a Prateada, com livros, guias e roupas de inverno para o Japão e Nova York).

Funicular: a última etapa do périplo de Tóquio a Monte Koya

Chegamos a Koya-san às 3 da tarde. Os principais templos da cidade – situados num complexo conhecido como Garan – fechariam às 4 e meia. Resolvemos ir ao Garan antes mesmo de passar no mosteiro, com bagagem e tudo. Eu não comprei os direitos de imagem para publicar fotos de passageiros RiqTours neste blog, mas devo dizer que tenho fotos de alguns-de-vocês-sabem-Quem arrastando uma malinha de mão (de rodinhas) pela neve, enquanto este que vos bloga fotograva templos.

Nick arrastando maletinha na neve

(Atualização: consegui autorização!)

Esses dois aí de baixo são exemplos raríssimos de pagodes de dois telhados (normalmente eles têm três ou cinco).

Pagode de dois telhados no Garan em Monte Koya

Pagode de dois telhados no Garan em Monte Koya

O mosteiro em que ficaríamos hospedados se situa na extremidade oposta do vilarejo, às portas do cemitério. Fomos andando pela calçada congelada, passando pela frente de mosteiros e mais mosteiros, entremeados por uma ou outra loja. Durante todo o caminho fui decorando a frase com que abordaria algum passante, assim que chegássemos ao lugar onde o mapa indicava ser o nosso mosteiro: “Hai! Shojoshin-in?”.( “Hai!”, como você bem sabe, quer dizer “Hai!”, mesmo. E “Shojoshin-in” vem a ser o nome do nosso mosteiro.) Chegamos ao lugar onde o mapa indicava ficar o nosso mosteiro, abordei um passante, falei “Hai! Shojoshin-in?” e ele respondeu coisas que eu não entendi, mas que pelo ideograma de seus gestos deviam significar “desculpe, eu não falo inglês”. Repeti, então, a frase tão arduamente decorada – “Hai! Shojoshin-in”, tentando fazer cara de quem estava falando japonês. Meu interlocutor continuou achando que eu falava inglês – e então eu lembrei que tinha impresso (ou imprimido? nunca sei) o e-mail do americano da Japanese Guest Houses que trazia os nomes dos ryokans escritos em ideogramas japoneses. Mostrei para o passante-san; ele sorriu, falou um monte de coisas que eu não entendi, mas estendeu o braço direito em direção ao prédio atrás da gente, num ideograma gestual que eu entendi como “é aqui mesmo”.

O nosso mosteiro!

O monge que nos recebeu não devia ter mais do que 20 anos. Veio quase correndo, com medo de que a gente esquecesse de tirar os sapatos e calçar os chinelos de plástico que ficam de plantão na escadinha da porta principal. Preenchemos a ficha de entrada e ele então deu as instruções, escrevendo os números num bloco de papel, para não haver mal-entendidos. Jantar, 6 e meia. Banho, até 9 horas. Amanhã, 6 e 20, bum bum bum (entendemos como hora do despertar). Ritual matinal, 6 e meia. Café da manhã, 7 e meia. Check-out, 10 horas. Hai? Hai. Mandou deixar a maleta por ali mesmo e foi nos mostrar o alojamento. Avisou: “Best room!” e disparou na frente. Nós fomos atrás, e eu já estava agradecendo: “Arigató”. (A essas alturas eu já tinha notado que os japoneses não falam arigatô, e sim arigató. Ou pelo menos eu ouvia assim.) Atravessamos um salão vazio, subimos uma escadinha, viramos num corredor; o monge falava “Best room!” e eu agradecia, “Arigató!”. Chegamos, e só então eu entendi que ele queria nos mostrar o banheiro de tomar banho, “bathroom”, e não o melhor quarto, best room.

O quarto

De todo modo, nosso quarto não era mau – e, dada a inexistência de outros hóspedes, deveria ser mesmo o melhor. Tínhamos um janelão com vista para um o jardim japonês (congelado, claro). A mesa estava posta com chá e docinhos de feijão. No canto do quarto podíamos ver nossos yukatas – quimonos que devem ser usados enquanto você está num ryokan. O aquecedor a gás aumentava a sensação de rusticidade. Só duas coisas estavam fora do script: a televisão (!) e a luz fluorescente da luminária principal. Mas acendemos só uma lanterna, e tudo ficou monasticamente japonês. Ficamos tomando chá verde e contemplando a noite cair sobre o jardim japonês congelado, até que o monge viesse nos chamar para o jantar.

Lanterna no quarto

Ao contrário do que acontece nos ryokans, nos mosteiros de Koya-san as refeições não são servidas no quarto, mas numa salinha à parte, parecida com os reservados dos restaurantes japoneses do Brasil. Todos os mosteiros de Koya-san preparam “shojin-ryori” – uma culinária estritamente vegetariana, característica do budismo local. Pensamos que iamos sofrer, mas o jantar no Shojoshin-in acabou se revelando nossa mais inesquecível refeição japonesa. Até o tofu era saboroso – e era bom mesmo que fosse, porque ao todo tivemos que experimentar quatro variações em torno do tema (com texturas e temperos diferentes, incluindo uma versão doce). Os picles não exageram no vinagre, e os monges preparam uns cogumelões adocicados que vou-te-contar. Já o shoyu tinha um azedinho delicioso que não encontramos em nenhum outro lugar. Aproveitamos que não tinha ninguém vendo, e tacamos shoyu no arroz. (Desculpaê, kudassai.) Na volta ao quarto, nossos futons já tinham sido desenrolados e arrumados para uma noite de sono. Fomos para o banho e, depois de meia hora de ofurô, dormimos como pedras de jardim japonês – acordando só ao amanhecer, ao bum bum bum do gongo chamando para as orações matinais.

Jantar no mosteiro

Blogueiro pagando mico de yukata

Acordamos, vestimos nossos yukatas e ficamos esperando o monge vir nos buscar para o ritual. Seis e vinte e cinco. Seis e vinte e oito. Seis e meia, nada. Será que era para ficar esperando? Ou será que era para ir direto? Eu não me lembrava de nenhuma instrução específica. Seis e trinta e cinco, resolvemos sair em busca de algum sinal de atividade religiosa. O monge jovenzinho do dia anterior tinha nos mostrado onde ficava o banheiro de tomar banho, onde ficava o banheiro de ir ao banheiro, onde ficava a salinha de comer, mas não tinha mostrado onde ficava o templo-templo. Decidimos então voltar ao portão de entrada e pegar o corredor que levava à ala oposta de onde estávamos. Deu certo. Começamos a ouvir vozes ao longe, em volume crescente. Deslizamos uma porta de correr, e lá estavam eles. Quatro monges de cabeça raspada, sentados sobre as próprias pernas, no tatâmi, de frente para um altar dominado por um enorme Buda. Vimos uma fileira de bancos inteiriços encostados na parede e nos sentamos. Começamos então a absorver o ambiente. Flâmulas vermelhas penduradas no teto dividiam o recinto em dois. Em frente ao Buda havia objetos (enfeites?) antigos, posicionados simetricamente, além de frutas (oferendas?). Na extrema direita, na mesma linha dos monges, uma mulher estava sentada numa caderinha muito baixa. Tanto os monges quanto a mulher tinham livros grossos à frente, nos quais liam as orações. Um dos monges – o segundo, da esquerda para a direita – tinha sob sua guarda também um bumbo (deitado) e alguns bastões de madeira. Quem comandava tudo era o monge da extrema esquerda – os outros respondiam ou faziam a segunda voz. Na hora me ocorreu que o tom e o jeito de rezar daqueles monges não era muito diferente do que conhecemos como canto gregoriano. Quando eu estava começando a viajar no mantra dessa idéia, porém, um dos monges olhou para trás e veio até mim. Apontou para os nossos yukatas, nos levou até a porta de correr e falou: “Change!”. Como assim? A gente tinha amarrado errado? (A gente sabia que tinha alguma coisa de amarrar o kimono com a esquerda sobre a direita, ou contrário.) Quando a gente estava do lado de fora, ele apontou para ali mesmo e falou: “Change”. Pelo jeito, não era o caso de ir até o quarto e trocar totalmente de roupa. Na hora, chegamos à conclusão de que era para tirar o yukata de baixo, que de repente devia ser só um pijama, e ficar só com o yukata de cima, que era quentinho e tinha cara de quimono. Será? Ele voltou para dentro, nós tiramos os yukatas de baixo e entramos novamente. Acho que era isso mesmo, porque dali a cinco minutos fomos inclusive convidados para dar uma passadinha por trás das flâmulas – e por trás do Buda também – e queimar incenso numa pira. De volta ao nosso banquinho, acompanhamos o fim do ritual, com uma intervenção cada vez maior do bumbo e da marcação de ritmo com os bastões. Daí os monges e a mulher se levantaram, fizeram “Hai!” e um deles disse: “Go room now”. Voltamos ao quarto e ficamos esperando nos chamarem para o café da manhã.

Eu falei café da manhã? Teria sido mais apropriado falar “desjejum”. Experimente amanhã cedo: arroz japonês, chá verde e picles.

Mas quem precisa de café (ou de banho) depois de rezar com monges budistas e cometer gafes indumentárias graves logo pela manhã?

Abreviamos o desjejum, arrumamos a maleta de mão e fomos gastar nossa última hora em Monte Koya passeando por entre os túmulos dos budistas vips. Àquela hora, e naquele frio, não havia mais ninguém vivo no cemitério mais bonito do Japão.

Monte Koya: cemitério budista

Lá pelas tantas, caímos na gargalhada. Valeu a pena. Um dia a mais em Kyoto não teria sido tão divertido.

Monte Koya: cemitério budista

Estou republicando a blogagem ao vivo da minha volta ao mundo de 2005. Os posts vão ao ar mais ou menos nas datas em que foram originalmente publicados. Para ler sobre Cidade do Cabo, Cingapura, Sydney e Tóquio, clique aqui.

21 comentários

Por favor, poderia informar o nome do Ryokan onde vc se hospedou?

    Olá, Fabricio! Quem responde é A Bóia. O mosteiro onde o Ricardo Freire se hospedou é Shojoshin-in.

Não há mais que se preocupar com gafes indumentárias. O senhor que nos recebeu e deu as instruções ao chegarmos no Shojoshin-in repetiu várias vezes: yukata breakfast and dinner YES, morning ceremony NO.

Riq,
Tive que olhar a foto duas vezes, porque não tava te reconhecendo sem o uniforme camiseta preta 😀
Achei um pouco tensa a experiência ! Mas ri da sua 🙂
To aqui felizona planejando uma viagem pro Japão.
[]s!

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