Kyoto, quase sem protocolo

Gueixas em Kyoto

12 de fevereiro de 2005. As placas da estação dizem: Kyoto. O painel de mensagens dentro do vagão informa, com todas as letras: Kyoto. A voz do alto-falante do trem também fala, num inglês claríssimo: Kyoto Terminal. Ainda bem: se não dissessem, você não teria como adivinhar. A Kyoto onde você desembarca é uma grande cidade japonesa como outra qualquer – e não a cidadezinha tradicional parada no tempo que consta do arquivo de imagens pré-instaladas da sua cabeça. A estação é enorme e moderníssima, toda de vidro, acoplada a um hotel de luxo e uma loja de departamentos. Quer dizer: de uma certa forma, a avenida em frente à estação parece parada no tempo, sim – nos anos 70, para ser mais exato, com uns prédios feios que só.

No terminal de ônibus anexo à estação de trem

Mas não, você não errou de estação. A Kyoto antiga continua em cartaz, em bolsões históricos espalhados pela cidade. E o mais incrível: chegar até eles é bico. O posto de informações turísticas distribui um mapinha superprático que mostra como se locomover de ônibus e metrô por entre os pedacinhos mais fotogênicos de Kyoto. Um outro folheto traz quatro roteiros de caminhadas por essas regiões. No próprio terminal de ônibus urbanos anexo à estação, as placas dos pontos finais informam, em inglês, as áreas de interesse histórico servidas por cada linha. Para cumprir todos os circuitos, o visitante precisa de pelo menos três dias inteiros na cidade. Como só teríamos uma tarde, uma noite e uma manhã, era preciso estabelecer prioridades. Guardamos a maleta de mão num dos guarda-volumes da estação e fomos tomar um capuccino no Starbucks para decidir qual seria a caminhada da tarde. Optamos por explorar o bairro de Higashiyama – não só pelos templos, mas também por ser contíguo ao bairro de Gion (diga Guion), onde há a maior concentração de gueixas e aprendizes de gueixa (maikô) do Japão. Depois voltaríamos à estação para pegar a mala e tomar um táxi para o nosso ryokan. Na manhã seguinte, uma voltinha pelo Castelo de Kyoto e tchau.

Jardim do castelo

Kyoto entrega. Se Tóquio banca a difícil, Kyoto é facinha. Aos trinta segundos de caminhada em Higashiyama, finalmente nos sentimos no Japão. (Koya-san foi lindo, mas estava mais para Horizonte Perdido  do que para Shogun.) Não adianta. Por mais que se viaje, a gente sempre sucumbe ao clichê.

Em Kyoto

Se eu fosse construir uma cidade cenográfica japonesa, é exatamente assim que ela seria. Andamos por ladeiras sinuosas, repletas de sobradinhos de madeira com cortinas de palha, portas de correr e luminárias de papel de arroz. Os templos se anunciam à distância – é só andar em direção aos pagodes salientes no horizonte. Riquixás arrastados por meninos carregam turistas, inclusive japoneses. As vitrines dos restaurantes não mostram comidas de um tipo só (ou sushi ou sopa ou tempurá), mas banquetes completos, os kaiseki, refeições de uma dúzia de minipratinhos (com preço entre 50 e 120 dólares por pessoa).

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Os deuses também atendem em inglês

Então caiu a ficha. Eu, que adoro montar uma viagem como quem monta um menu – com aperitivo, entrada, sorbet, prato, sobremesa, café e licor –, deveria ter planejado o trecho nipônico da viagem como um banquete japonês. Começar pelo mais delicado: o shashimi fresquíssimo, os legumes arranjados da maneira mais artística. A seguir, frituras enxutas e picles ardidos. Então um cozido exótico, com um molho inesperado. E só no final, naquela hora que você já está pedindo a segunda garrafinha de saquê , servir o arroz bastantão. O banquete japonês é assim: somente depois de encantar os olhos e aguçar o paladar é que o cozinheiro se preocupa em encher a barriga dos comensais. Traduzindo em estratégia de viagem – o itinerário ideal de um tour ao Japão começa por Kyoto (delicada, familiar e de fácil digestão), passa por um ou outro lugar mais exótico e aí, só no final, quando o viajante já estiver encantado e alegrinho, é que deve atacar a cumbucona de arroz de Tóquio. Falei. Bom apetite.

Em Kyoto

Em Kyoto

Em Kyoto

Depois da caminhada, voltamos para a estação para pegar a mala e tomar um táxi para nosso ryokan. Para quem perdeu algum capítulo anterior, ryokans são hotéis ao estilo japonês, onde você dorme em colchõezinhos baixos estendidos no tatâmi, toma banho à japonesa (lavando-se num chuveirinho e depois relaxando num ofurô) e janta um pequeno banquete kaiseki no seu próprio quarto. Os preços assustam. A diária mais barata de um ryokan realmente tradicional beira os 300 dólares – os mais bestas podem custar de 500 ou 600 dólares. Em termos relativos, entretanto, o preço não é tão absurdo, já que só o jantar custaria metade do que o ryokan está cobrando. Por causa do jantar, o check-in num ryokan deve ser feito no máximo até às 5 e meia da tarde – senão a cozinha não tem tempo de preparar todos os pratos. A corrida de táxi foi curtinha (menos de 15 minutos) e barata (10 dólares). Para nossa surpresa, nosso ryokan, chamado Motonago, ficava exatamente no bairro que a gente tinha percorrido à tarde. (Confesso que escolhi este ryokan pelo preço – era o ryokan tradicional com a diária mais em conta no site Japanese Guest Houses.com – e acabei esquecendo de pesquisar a localização.) A recepção foi bem mais calorosa do que no mosteiro de Koya-san. Três japonesas de quimono não paravam de rir e fazer reverências, irashaimassé, hai, arigató. Aliás, a única maneira de fazer com que elas parassem de fazer reverências foi pedir para tirar uma foto. Por um momento, achei que a minha câmera emitia um gás paralisante.

Ryokan Motonago, Kyoto

Ryokan Motonago, Kyoto

O quarto era menor, porém mais confortável que o do mosteiro. Não tinha vista para o jardim, mas vinha com seus próprios banheiros (tanto o banheiro de tomar banho quanto o banheiro de ir ao banheiro). Preste atenção, por favor, porque aqui o parágrafo vai ficar meio confuso. Apesar do nosso banheiro de tomar banho ser ocidental (American style, ou americanustaru), o banheiro de ir ao banheiro era japonês (Japanese style, ou japanizustaru). Foi o primeiro banheiro japonês da viagem. Esqueci de fotografar (desculpa), mas eu diria que se trata de uma espécie de banheiro turco elevado por um pedestal. Até onde eu entendi, você sobe no pedestal, fica de cócoras e então faz o que precisa ser feito. Se a gente não quisesse passar por essa experiência antropológica, tudo bem: era só descer ao térreo, onde ficavam os banheiros comuns a todos os quartos. Ali, os sinais se invertiam, e o banheiro de tomar banho era japanizustaru, com banquinhos e ofurô, e o banheiro de ir ao banheiro era americanustaru, com privada, assento quentinho e jato d’água.

Vestimos nossos yukatas (os quimonos de ficar em ryokan) e descemos para o banho japonês. Às 7 em ponto uma das japonesas da recepção – agora com um quimono mais requintado – chegou para arrumar a mesa para o jantar. Tentamos apagar a luminária fluorescente pendurada bem em cima da mesinha do jantar, mas ela não deixou – e de quebra mandou ver num sermão em japonês, provavelmente sobre a importância de se enxergar a comida, mesmo que para isso seja preciso lançar mão de iluminação de estádio de futebol. Nosso kaiseki veio em quatro etapas. Primeiro o sashimi, fininho e elegante, e uns potinhos com legumes chiquérrimos. Depois, peixe grelhado, picles e umas friturinhas, tudo tão bonito que dava pena de estragar o layout. Da terceira vez que subiu, nossa garçonete de quimono trouxe dois fogareirinhos com água e umas lascas de nabo (acho), onde jogou pedaços de carne que ficaram cozinhando sobre um foguinho daqueles de réchaud. Quando as chamas se apagaram, a carne estava cozida – e então deveria ser mergulhada num delicioso molho adocicado. Na última rodada veio o missoshiro e a cumbuca de gohan (arroz). Claro que esperamos a moça sair para misturar um shoyuzinho no arroz, um ato que sabemos ser totalmente ilegal (talvez até mesmo imoral) por aqui, mas que faz parte da nossa tradição japonesa particular lá de casa. Felizmente, ao voltar para limpar a mesa e deixar o chá verde e a sobremesa (três morangos), nossa garçonete fingiu que não viu os resquícios de shoyu nas nossas cumbuquinhas de arroz, poupando-nos, assim, de mais um sermão nipônico.

Uma das etapas do kaiseki

Já pra cama, e banzai

Desligamos a luz branca, e, como já tinha acontecido no mosteiro, o quarto voltou a ficar lindo. Às nove e meia, nossa criada voltou para arrastar a mesinha e fazer nossas “camas”. Ligamos a TV e ficamos zapeando os canais abertos. Em cada um deles, uma variante do mesmo programa, nada muito diferente do Domingo Legal do Gugu. E achamos tudo aquilo muito japonês: ofurô, banquete, cama no tatâmi e sete SBTs para zapear.

Estou republicando a blogagem (mais ou menos) ao vivo da minha volta ao mundo do início de 2005. Os posts vão ao ar (mais ou menos) na data em que foram publicados originalmente. Para ler sobre a Cidade do Cabo, Cingapura, Sydney, Tóquio e Monte Koya, clique aqui.

12 comentários

Oi Ricardo
estou partindo para o Japão no final de setembro e preciso de uma dica.

Penso em dormir uma noite em um ryokan em Kyoto e as demais 4 noites em um hotel. Quais são os melhores bairros para ficar em Kyoto? E em Hiroshima (fico 3 dias).

Obrigada
Juliana

    Olá, Juliana! Aqui quem responde é A Bóia.

    O Ricardo Freire indica um ryokan neste post. Por que você não tenta esse?

    O Ricardo Freire não esteve em Hiroshima e sempre que toca no assunto recomenda um bate-volta desde Kyoto.

    Um ótimo guia para o Japão é o https://www.japan-guide.com .

Ricardo,
Suas informações são objetivas, claras. parabens.Estamos planejando uma viagem ao Japao (um casal) e a pergunta é: é possivel realizar a viagem por conta própria? (certamente com suas dias imprescindíveis…)

anselmo

    Eu fui por conta própria. Comprei passagem e também o passe de trem pelo agente de viagem (o passe só dá pra comprar num representante autorizado), e reservei os hotéis pela internet, inclusive os ryokans (estes, em https://www.japaneseguesthouses.com ).

Ai que saudade!
Fizemos questão de seguir a sua ordem, e mesmo aportando em Narita seguimos direito de trem-bala (viva o Japan Rail Pass!!) pra Kyoto, pra só terminar a viagem em Tokyo. Excelente dica! Arigatô gossaimás (com reverência pra tela)! :mrgreen:

No ano passado quando fui para Osaka dei uma passada por Kyoto.Foi minha segunda vez e era justamente na epoca do “sakura”.Kyoto é especial, exerce um fascínio, os templos são maravilhosos, a iluminação da torre de Kyoto refletida nos vidros da estação central faz com que a estação fique ainda mais bonita.Por um instante achei que eram duas torres. Acabei de voltar de Tokyo, fui ver a Exposição Internacional de Orquídeas no Tokyo Dome e depois dei uma esticada até Yokohama.Para quem vem ao Japão e tem tempo disponível eu recomendo um passeio em Yokohama. De Minatomirai até Motomachi dá para fazer tudo a pé e é muito bonito.O Yokohama Chinatown foi surpreendente, tem dois templos magníficos e muitos restaurantes e lojas. Fevereiro é o ano novo chinês, tinha uma multidão nas ruas, estava a maior muvuca, quase fui pisoteada.rsrs Acho que gostei mais da Chinatown japonesa do que Pequim.Para quem se interessar aqui vai o site: http://www.welcome.city.yokohama.jp/eng/tourism/
Para quem utiliza transporte público tem um site que dá várias opções de viagens e é extremamente útil. http://www.jorudan.co.jp/english/

Adorei o “Os templos se anunciam à distância”. Quando penso em Kyoto, uma das imagens que vem na cabeça é o céu no fim da tarde com os “pagodes salientes”. Lindo!

Ai ai ai… se o Kiko ler esse post ela pega o avião agorinha para o Japão. Essa é a viagem que esta na nossa listinha de prioridades… mas se der certo, só no ano que vem!
Belíssimo post…
Abs

Este era o post que eu precisava ler p/ finalizar as decisões da minha viagem. Obrigada, Riq! 😉

    A Delta e a American têm voos diretos de Honolulu pra Kansai, o aeroporto de Osaka, que está a uma hora de Kyoto!

    Não deixe de comprar o Japan Rail Pass!

    Então, eu estou pensando em ir por Narita (pra ficar uns dias em Tóquio) e voltar pelo Kansai. Assim vejo as 2 cidades q mais tenho vontade de conhecer no Japão – e já q não poderei dessa vez ir a Okinawa. Como é viagem de negócios, vou ter q encaixar passeios no meio das reuniões. 😀

    Bem lembrado sobre o Japan Rail Pass, eu tinha completamente esquecido.

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