Takayama: um saquê de saideira

Na porta de uma destilaria em Takayama

13 de fevereiro de 2005. Ela bem que tentava, mas não conseguia terminar uma frase sequer. Às vezes calhava de emendar três, quatro palavras; mas quando lhe faltava a palavra seguinte, ela parava, forçava a memória e, quando via que não ia ter jeito, caía naquela gargalhada nervosa-tímida-simpática a que a gente acaba se acostumando depois de alguns dias no Japão. “Sorry my English!”, “Sorry my English!”, ela repetia, entre um hihihihi e outro.

Eu não sabia se valia a pena tentar dizer a ela que no nosso país muito menos gente ainda falava inglês; que em nossas estações de trem não havia sinalização em inglês; que os alto-falantes dos vagões dos nossos metrôs não anunciavam as estações em inglês; e que nossas destilarias de saquê não mantinham meninas simpáticas como ela, capazes de fazer o tour de demonstração nessa língua engraçadíssima, o inglês com cócegas. Por via das dúvidas, me limitei a ficar repetindo “it’s OK, it’s OK” e a acompanhar seus hihihihis com uns hahahahás. Em algum lugar entre as fotos da colheita do arroz e as fotos do tratamento dos grãos ela conseguiu entender que a gente era do Brasil, o que permitiu que a gente chegasse ao engenho de destilação e aos barris de armazenamento trocando informações valiosas, como “Japan… cold. Brazil…. hot!” – um tópico que fazia muito sucesso, sempre que vinha à baila. No final do tour, depois de provar quatro saquês diferentes, ainda ganhamos dois calicezinhos para levar para casa. E para cada arigató que eu lançasse, ela devolvia com o de sempre: “Sorry my English!”. E hihihihi.

Rua em Takayama

Takayama é uma cidadezinha serrana a 2 horas e pouco de Nagóia. A pureza de suas águas faz a fama dos saquês produzidos por aqui; todo mês de fevereiro, as destilarias da cidade abrem as portas para visitantes – uma por dia. Além do saquê, a cidade tem algumas ruas históricas com casario de madeira preservado; nos arredores é possível visitar vilas rurais de arquitetura também peculiar. Nada disso talvez valha o que deixamos de ver, caso ficássemos mais um dia em Kyoto. Mas se não tivéssemos vindo, teríamos perdido uma linda viagem de trem, acompanhando o curso de um rio de águas verdíssimas margeado por uma floresta de pinheiros. Não teríamos nos divertido com o tour do saquê em inglês com cócegas. Não teríamos nos hospedado no ryokan mais simpático de toda a viagem, onde dormimos com vista para o rio e a lua cheia e a neve caindo na ponte, e comemos sashimi de peixe de rio e a carne mais tenra de que podemos nos lembrar.

Nosso ryokan em Takayama

É a última de nossas oito noites no Japão. (Pareceu mais porque esse blog é que nem novela brasileira em Portugal: vai ao ar com váááááários dias de atraso.) Você talvez tenha vontade de perguntar: e então, deu pra conhecer o Japão?

Vamos combinar uma coisa? Nunca use esse verbo, “conhecer”, aplicado a viajar. Não existe a mínima possibilidade de se “conhecer” lugar nenhum viajando. Ao viajar para longe de casa, o único lugar que a gente talvez venha a conhecer melhor é o lugar de onde a gente veio. Os outros lugares a gente nunca conhece – a gente só visita.

E o que eu visitei no Japão? Eu visitei as vendedoras de comida do trem-bala, que fazem reverência aos passageiros antes de sair com o carrinho para o próximo vagão. Eu visitei as moças do caixa que pegam o seu dinheiro com as duas mãos e devolvem o troco com as duas mãos, também. Eu visitei um lugar em que a interação entre duas pessoas faz surgir um universo paralelo (e passageiro) de gentileza e delicadeza e simpatia que eu sinceramente não sei se conseguiria sustentar a vida inteira.

Indo embora de Takayama

Se na saída, no controle de imigração, eu tivesse que deixar uma declaração ao povo japonês, faria minhas as palavras da guia da destilaria de saquê de Takayama: Sorry my English!

Continuo republicando a blogagem (mais ou menos) ao vivo de minha viagem de volta ao mundo de 2005. Para ler sobre a Cidade do Cabo, Cingapura, Sydney, Tóquio, Monte Koya e Kyoto, clique aqui.

9 comentários

Estou emocionada com os detalhes que você pôde perceber. Com os olhos cheios de lágrimas fui ler os comentários e vi que outras pessoas sentiram o mesmo. Amei o que escreveu. Isso é o que vale a pena !

Boa noite, Pretendo ir a Takayama de Nagoia. Acha muito puxado fazer um bate-volta de trem? Outra coisa. É possivel usar o Japan Rail pass para essa viagem?
Obrigada,

    Olá, Sueli! É possível usar o Japan Rail Pass. Mas não vá a Takayama em bate-volta, não vale a pena. Durma lá e faça um passeio a Shinagawa.

Estive em Takayama em Novembro. A cidade é uma graça, histórica e grande fabricante de saquê.
Os casarios de madeira são muito diferentes e interessantes. Vale ressaltar o restaurante Hida Beef – maravilhoso. Pegamos um onibus para Shirakawa-Go. Vila produtora de seda encravada nas montanhas, cujo acesso é por uma ponte. A cidade de Gero – fica a 1hora de trem de Takayama e é conhecida por suas “onsen” – fontes de água quente. Afinal os banhos quentes fazem parte da cultura japonesa ( atenção para a etiqueta nos banhos ). Vale dar uma conferida!!
Lugares imperdíveis!! Abs Amélia – Rio de Janeiro

    boa noite Amélia, você chegou a pernoitar em Gero ou Shirakawa?
    Se tiver alguma sugestao de onsen agradeço.
    Abs Sergio

Ricardo,

Muito obrigada mesmo por essa narrativa detalhada!
Estou impressionada com os ricos detalhes que você pôde captar e a emoção que consegue transparecer em seu texto.
Meu coração está cheio de ansiedade agora!

E devo confessar que algumas lágrimas vieram aos olhos em seu último parágrafo!

Obrigada mesmo pelas dicas! Vou agora mesmo começar o meu Diário de Viagem!

Eu já estava acostumando a saborear os relatos como num jantar no estilo kaiseki – sempre com a esperança que viria mais um prato – e você serve a saideira…

Fico, então, aguardando e torcendo por um retorno seu em breve ao arquipélago nipônico. Estou curiosíssimo para saber qual seria o próximo roteiro que você faria depois desse primeiro estágio e dos tratados antropológicos sobre as jovens japonesas (hihihihis, com as duas mãos, VACANT? etc.).

A sua capacidade e sensibilidade para captar as inerências no ar me comoveram.

Muitos estrangeiros escracham os japoneses pela dificuldade com o inglês. Você se despede com um “Sorry my English!”…

Nada combina melhor com o Japão do que essa humildade e respeito. Pessoas assim se dão bem por aqui, mesmo com um inglês ruim.

Seja sempre bem-vindo!

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