O Cruce de Lagos é o jeito mais estrepitoso de viajar entre Bariloche e a região dos lagos andinos chilenos (Puerto Varas e Puerto Montt). Opera nas duas direções, leva o dia inteiro (das 7 da manhã às 7 da noite) e não é barato: custa a partir de US$ 230 (na tabela de 2016). De ônibus comum a travessia custa meros US$ 27 e leva 5 horas. Vale a pena? Primeiro eu vou contar a viagem; no final eu teço minhas considerações (e abro a caixa de comentários para as suas, claro).
O ônibus passou às 7h30 (a previsão era 7h15) no nosso hotel em Bariloche, o Design Suites, a 2,5 km do centro, já a caminho de Puerto Pañuelo, de onde sairia o primeiro barco. Nossas bagagens foram etiquetadas na hora.
O amanhecer estava um espetáculo. (O estranho é que nesse fim de verão/princípio de outono amanhece muito tarde, tipo 7h15, e escurece muito tarde também, tipo 20h15. Acho que esse horário está errado; tinha que ter uma hora de fuso de diferença do Brasil.)
Em vinte minutos chegamos a Puerto Pañuelo, o porto em frente ao hotel Llao Llao de onde saem os passeios pelo lago Nahuel Haupi. Não precisamos nos preocupar com as malas; como em todas as etapas do périplo, elas são manipuladas pela equipe do Cruce.
Embarcamos numa lancha enorme, com janelas panorâmicas. Éramos poucos (coubemos em apenas um ônibus). Tivemos a sorte de pegar um guia talentoso, o Eduardo. (Pensei que tivesse sido o mesmo que a Carmem Silvia e a Ana pegaram, mas o delas era chileno; o meu, argentino.) O cara não soa como um folheto de secretaria de turismo -- ele narra a viagem com informações relevantes e comentários inteligentes. Ele deve dar esse mesmo texto há anos, mas a prática parece tornar a sua apresentação mais leve e fluida (e não cansada e burocrática). A atuação desse Eduardo era tão boa que estava me fazendo rever (pre)conceitos sobre excursões guiadas em grandes grupos.
A primeira etapa lacustre percorre o braço menos navegado do lagão Nahuel Huapi. Os barcos que partem do Puerto Pañuelo normalmente vão para a ilha Victoria e para o Bosque de Arrayanes (não encontrei a denominação destas árvores em português -- arraiães?; o nome científico é luma apiculata), ambos para os lados de Villa La Angostura. O barco do Cruce vai por outro lado, pelo braço Blest, na direção oeste. Ao passar pela ilha Sentinela, onde estão os restos mortais de Perito Moreno (sim, o do glaciar), o capitão soa o apito.
Depois de 1h20 de travessia, desembarcamos em Puerto Blest, numa baiazinha de tons esverdeados devido às águas que vêm do verdíssimo lago Frías, pertinho dali.
10 minutos mais tarde subimos em dois microônibus para uma besteirinha de 10 minutos de estrada de terra até o próximo porto: Puerto Alegre.
Ali pegamos uma charmosíssima lancha de madeira para meia hora de travessia pelas verdes águas do Lago Frías. O céu deu uma nubladinha, mas o Eduardo garantiu que éramos sortudos -- ali é o ponto mais chuvoso da Argentina, e é raríssima a vez em que o cruce não passa por ali debaixo de chuva.
A descida em Puerto Frías nos reserva a primeira parte chata da viagem: a passagem pela imigração argentina. Como no nosso caso a parada é para sair do país, bastou apresentar a ficha de imigração preenchida; não foi necessário abrir mala nem nada.
Nesse momento há a troca de guarda da liderança da expedição. O guia argentino (o elogiado Eduardo) volta para a Argentina, e seguimos com um guia chileno (tivemos o azar de pegar um certo Jaime). Subimos no terceiro ônibus do trajeto, para percorrer a mais antiga passagem entre as Patagônias argentina e chilena, aberta há séculos pelos indígenas da região e posteriormente aproveitada por missionários e colonizadores.
O ônibus faz uma parada simbólica no exato ponto da fronteira: Parque Nahuel Huapi e Argentina de um lado, Parque Vicente Pérez Rosales e Chile do outro. Eu poderia brincar de ficar fazendo ziguezague entre os dois países -- um passo e estou no Chile, um passo e volto pra Argentina --, mas a verdade é já faz três semanas que estou fazendo ziguezague entre os dois países a sério.
O céu limpou em algum momento dos 45 minutos de viagem, e perto do fim do caminho pudemos avistar o lado chileno do Cerro Tronador, a maior das montanhas da região. Pena que a qualidade da narração tenha diminuído: o texto agora parecia decorado; era repetido sem entusiasmo ou autoridade.
Esta etapa termina num lugar que os argentinos chamam Peúja, os chilenos, Peúia, e ambos escrevem Peulla. É, sob todos os ângulos, o ponto baixo da expedição. Primeiro, porque você fica pelo menos 45 minutos na fila da imigração chilena. Depois de pegar o carimbo no passaporte você precisa reconhecer sua bagagem (que já estará no recinto, trazida pelos carregadores do Cruce) e levar as malas à mesa de inspeção, onde todos os volumes serão abertos e tateados à procura de frutas, laticínios e carnes que possam ameçar a agropecuária chilena.
Estão fazendo a parte deles, e não temos razão nenhuma de reclamar.
Mas não é por isso que o Cruce de Lagos precisa nos obrigar a ficar mais três horas e meia nesse fim de mundo. Peúja, Peúia ou Peulla deve querer dizer, em mapuche, "lugar sem nada o que fazer e com comida muito cara". Existem dois hotéis por ali, um 3 estrelas, e outro mais metido; só o de luxo fica aberto na baixa temporada. O preço do menu do almoço? Quarenta dólares! Um assalto! (Se é pra pagar quarenta dólares para comer, fora a bebida, então fico em São Paulo mesmo, concorda?) Escolhemos dois pratinhos do cardápio mesmo, e nos foi servida a comida mais sem-graça da viagem. Comemos beeeeem devagarzinho, e mesmo assim depois do café ainda tínhamos uma hora e meia de chá de cadeira por ali. Se você é propenso à depressão e pára ali num dia chuvoso, a possibilidade de amarrar uma pedra bem pesada à perna e se atirar no lago é bastante alta.
Sério: essa parada em Peúja-Peúia-Peulla é um pecado mortal de timing. O passageiro vem de duas sessões chatas de imigração e -- o que o Cruce de Lagos serve como compensação? Uma parada caça-níquel. Por que demora tanto? Porque a continuação do passeio é feita na companhia do povo que veio do Chile para passar a tarde nesse lugar sem nada pra fazer, e precisa de mais tempo para não fazer nada antes de voltar.
(Atenção: no inverno o Cruce é feito com pernoite em Peúja-Peúia-Peulla, porque não há luz para fazer toda a travessia num dia só. Mas pelo menos nesse caso você tem uma cama para descansar.)
Mas finalmente em algum momento o relógio deu 4 da tarde (tínhamos chegado às 11h30 na imigração chilena...) e o nosso catamaranzão partiu (com o nosso grupinho e a multidão que veio de Petrohue para não fazer nada). Naquele momento o céu estava magicamente azul, uma raridade absoluta nos lagos chilenos.
Podíamos ver o tom esmeralda do lago Todos los Santos (foi avistado pela primeira vez num 1º de novembro) e dava para esperar que o vulcão Osorno nos aparecesse em todo o seu esplendor. Não havia mais a narração instrutiva-divertida do Eduardo, mas tudo bem: a paisagem era linda demais.
Só que...
Descobri -- tarde demais -- que no fim da tarde o sol, que se põe no oeste, está iluminando o outro lado do Osorno, voltado para o lago Llanquihue. E que nós, atravessadores vespertinos do lago Todos los Santos, temos que nos conformar com a silhueta do vulcão no contraluz.
Snif.
Essa terceira (e última) etapa de navegação dura 1h45 e nos deixa num porto em Petrohué. Ali precisamos reconhecer as malas e conduzir a bagagem até o ônibus designado para o grupo.
60 km separam Petrohué de Puerto Varas. No caminho ainda estava prevista a parada para ver os Saltos de Petrohué, cachoeira que consta de toda lista de must-sees da região. A caminho de lá, porém, algo muito mais importante apareceu: o Osorno na janela de trás! Lindão e iluminado!
Mas quem disse que o ônibus parou em algum lugar para a gente registrar essa raridade? Nem te ligo. O guia, desleixado, sequer comentou a aparição ilustre. Eu estava sentado do lado errado do ônibus e quase morri do coração até conseguir um espacinho para fotografar o cabeça-branca.
Daí em diante a coisa só piorou.
Um pouco antes de chegar aos Saltos de Petrohué, o guia veio com um papinho de que "talvez" não conseguíssemos entar no parque, porque os horários tinham mudado com o fim do verão. Mas a gente iria até a entrada do parque para "averiguar". Se estivesse aberto, a gente entraria.
O ônibus parou em frente à entrada do parque onde estão os saltos, o guia desceu do ônibus, foi até o meio do caminho, fez uma pantomimazinha falando com um motorista de um carro e subiu de volta no ônibus.
"É, o parque já está fechado. Mudou o horário no dia 15, agora fecha mais cedo."
Oi? Mudou o horário no dia 15, estávamos no dia 19, o Cruce tem saídas diárias e o guia não sabia da mudança de horários? Ora, faça-me o grande favor de não mentir deslavadamente ao microfone.
Perdemos não só os Saltos -- perdemos os Saltos EMOLDURADOS PELO OSORNO VISÍVEL NUM DIA ENSOLARADO. Dá vontade de processar o Cruce de Lagos, isso sim.
(Vou mandar um email, claro. Ainda não deu tempo.)
Claro que nos outros dias o tempo permaneceu nubladaço, com o Osorno escondidíssimo, e não valia a pena fazer esse passeio de volta para nada. Hmpf.
Enfim, essa foi a minha experiência. Agora, meus pitacos.
Vai por mim: Cruce de Lagos
É indicado para: quem quer fazer os dois lados dos Lagos Andinos em pouco tempo. O Cruce concentra vários passeios lacustres num dia só, e ainda te deixa em outro país. Custa caro, é certo, mas é bem organizado (não acredito que essa falha que aconteceu no final do meu passeio aconteça em todos) e usa embarcações de qualidade. O ponto baixo mesmo é agüentar Peúja/Peúia/Peulla.
Se eu fosse você: faria no sentido Chile-Argentina, para pegar o Osorno iluminado do lado certo, pela manhã.
Eu não faria o Cruce se: estivesse viajando com tempo mais folgado (tipo: 8 ou 9 dias para os dois lados) e não tivesse aversão a andar de ônibus de linha.
Minha receita alternativa: o preço do Cruce para duas pessoas (a partir de US$ 460) rende fácil uns cinco ou seis dias de aluguel de carro. Alugando carro dos dois lados da fronteira, e cruzando a fronteira de ônibus (US$ 27 por pessoa), você pode salpicar nos seus dias passeios lacustres curtos, em embarcações menores. Dá para embarcar na hora, sem reserva (e portanto com plena noção do que esperar meteorologicamente), para pequenos passeios pela baía Mansa do lago Nahuel Huapi (com direito a Bosque de Arrayanes), em Villa La Angostura, pelo lago Lacar, em San Martín de los Andes, e em Petrohue, à beira do lago Todos los Santos do lado chileno, que está colado no Osorno. Tudo dá muito mais trabalho (dirigir, se encaixar passeio por passeio, ficar cinco horas num ônibus comum na hora de cruzar a fronteira), mas pelo menos você evita Peúja e a enrolação de um guia como esse Jaime da minha viagem.
E você? Já fez o Cruce? Deixe o seu comentário, por favor.
Viagem feita em 2010.
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