Outro texto do Freire's, meu guia de praia de 2001. As fotos são da Pousada do Toque: em 2000 e 2010
Largar tudo e ir morar na praia. Atire o primeiro guia de viagem pela janela quem nunca pensou nisso antes.
Nos últimos dez anos, isso deixou de ser um sonho para virar um... setor da economia. Abrir uma pousada na praia foi a solução encontrada por milhares de brasileiros para antecipar a aposentadoria, mudar radicalmente de vida ou simplesmente dar serventia a um terreno que andava meio abandonado. O curioso é que o boom do sonho de abrir uma pousada na praia coincidiu com o fim do sonho de construir uma casa na praia. Cada vez menos numerosas -- e com menos dinheiro em caixa --, as famílias da classe média trocaram o projeto da segunda casa por férias de pacote e viagens ao exterior subsidiadas por um dólar muito barato (até 98, claro). O que só fez aumentar a clientela em potencial desse novo segmento de mercado.
Não existe forma de hospedagem à beira-mar mais adequada do que uma pousada. Informalidade, despojamento, contato pessoal: tudo isso combina com praia até não poder mais. Numa pousada bacana você sente inveja do dono. Numa pousada bacana você pensa: eu quero morar aqui. (É impossível sentir inveja do gerente de um resort. Ninguém jamais vai ter vontade de morar num resort.) Existem dezenas de pousadas bacanas no Brasil (algumas muito caras, outras nem tanto, e algumas incrivelmente acessíveis), e eu vou aproveitar todas as oportunidades ao longo do guia para falar muito bem delas. Para melhor demonstrar suas virtudes, no entanto, é preciso primeiro falar mal da pousada-padrão do litoral brasileiro.
Com licença, então.
Não dá para negar: a pousada-padrão da praia brasileira é herdeira, para o bem e principalmente para o mal, da nossa tradição de casa de praia classe-média. Enquanto uma casa de praia de gente-fina geralmente envolve arquiteto de grife e materiais de primeira, as nossas casas de praia classe-média são feitas num vamo-que-vamo fenomenal. O terreno é o que deu para comprar: não importa que esteja longe da praia ou cercado por áreas baldias e malcuidadas -- trata-se de um investimento de futuro, e um dia a praia vai crescer e se urbanizar até chegar no nosso cantinho, não é mesmo? Os móveis... bem, são os que a gente não quer mais usar no apartamento da cidade. Decoração? Para quê, se a idéia é ficar o maior tempo possível na rua? O fundamental é que os cômodos tenham o maior número possível de camas para acomodar os amigos e os priminhos e os vizinhos e os parentes que hospedam a gente na serra. É ou não é?
A maioria de nossas pousadas são como casas de praia inchadas que aceitam hóspedes pagantes. A localização raramente é ideal -- é supercomum uma pousada ficar no meio de um loteamento semi-urbanizado (ou semi-abandonado, dependendo do seu sarcasmo). Os quartos costumam sofrer do que eu chamo de Síndrome de Quarto de Empregada (desculpe, mas é o único lugar do seu apartamento da cidade onde você colocaria aqueles móveis e instalaria aqueles equipamentos de banheiro e usaria aquela roupa de cama). E isso nem é culpa dos donos. A culpa é da nossa cultura de veraneio. O hóspede, que já estava acostumado a acampar em casa de praia, acha natural pagar para acampar numa pousada.
Se existe um público (e como existe...) que não liga para essas frescuras de bom gosto e iluminação indireta e lençóis com alguma porcentagem de algodão, então pelo certo eu nem deveria meter meu bedelho. O problema é que a percepção de que pousada de praia é o império da breguice acaba prejudicando o desenvolvimento de um nicho de mercado que teria tudo para florescer: o das pousadas com bom gosto e serviço atencioso e iluminação indireta e lençóis com uma certa porcentagem de algodão.
Existir elas já existem. Mas, em boa parte dos casos, com bem menos sucesso do que mereceriam. Ignoradas pela mídia, que só tem olhos para os resorts, as pousadas bacanas acabam relegadas à vala comum do rodapé das reportagens, como se a única diferença entre elas e as pousadas-padrão fosse o preço. Diferença que, por sinal, acaba nem sendo tão grande assim. São pouquíssimas as pousadas bacanas que conseguem cobrar preços compatíveis com a sua qualidade. É que poucas, pouquíssimas pessoas parecem dispostas a pagar por uma pousada o que pagariam por um hotel. A não ser no alto verão, claro. Só que no alto verão as pessoas pagam qualquer coisa por qualquer tipo de acomodação na praia.
Ficar numa pousada bacana é infinitamente mais gostoso do que ficar em hotel ou resort. E o que é uma pousada bacana? Não é uma questão de ar condicionado, TV ou frigobar. É a soma de três fatores nem um pouco eletroeletrônicos: astral, localização e gentileza. Uma pousada bacana é aquela em que você gosta de ficar no quarto mesmo quando não está dormindo. Se o quarto for muito pequeno, então que seja agradabilíssimo ficar na sala -- de preferência, um avarandado. Uma pousada bacana é aquela que deixa você perto de uma ótima praia ou próximo da vida noturna (mas não do barulho). Uma pousada bacana tem sempre cafezinho fresco (se for expresso, então...) e alguém que faça uma caipirinha/roska com frutas da região. Uma pousada bacana tem funcionários que sorriem, guardam o seu nome, dão as informações que sabem e vão se informar sobre o que não sabem. E acima de tudo, uma pousada realmente bacana precisa parecer que está esperando a visita, a qualquer momento, dos fotógrafos da Elle Déco italiana.
Se queremos que a pousada-padrão melhore de... padrão, temos que dar todo o destaque possível às pousadas bacanas, para que sirvam de modelo. Talvez seja esse o objetivo mais pretensioso desse guia: fazer com que pelo menos parte do público passe a ter pelas pousadas bacanas a mesma curiosidade que tem por restaurantes bacanas. Aliás, é preciso que a informação sobre hospedagem circule com a mesma dinâmica com que circula a informação sobre gastronomia. Se a confeitaria da esquina coloca sementinhas de maracujá por cima da mousse de maracujá, é porque um dia saiu no jornal ou deu na TV que Claude Troisgros fazia isso, ficava bom e todo mundo podia fazer. No dia em que o candidato a dono de pousada souber que pode buscar soluções lindas, inteligentes e fáceis de ser adaptadas na Estrela d’Água, na Toca da Coruja e no Txai, ele vai deixar de se inspirar só nas soluções da casa de praia do tio em Ubatuba.
Mas existe um item em que as pousadas bacanas são tão ruins quanto as pousadas-padrão: a burocracia da reserva. Um cidadão pagador de impostos e cumpridor de seus deveres que queira passar o fim-de-semana ou o feriadão numa pousada qualquer, bacana ou não, é obrigado a cumprir um ritual enlouquecedor. Primeiro, liga para a pousada e reza para que a pessoa autorizada a confirmar reservas esteja trabalhando naquele horário. Acertadas as datas, o futuro hóspede precisa anotar o número do banco, o número da agência e a razão social da pousada para fazer um depósito bancário de metade do valor da hospedagem. Caso queira fazer o depósito via Internet banking, por DOC eletrônico, é preciso anotar também o número do CIC da pousada. Então, depois ir ao banco (ou mandar o boy) e voltar, ainda é necessário enviar um fax com o recibinho do depósito. E finalmente, por desencargo de consciência, recomenda-se ligar para a recepção, sempre rezando para que a pessoa que atenda o telefone possa falar sobre reservas, e perguntar se o fax do recibinho chegou legível. Será que já não era tempo de algum cartão de crédito entrar na parada e organizar as coisas, pelo menos para as 100 melhores pousadas do país?
Para terminar, alguns conselhos que podem aproximar o sonho de quem abriu uma pousada da pousada dos sonhos de quem vai se hospedar nela.
1. Iluminação direta (principalmente se for -- ugh -- fluorescente) ressalta as imperfeições da construção e, se for forte demais, transforma o quarto numa sala de interrogatório. Instale pelo menos um abajur (simplesinho) em cada quarto, para os fotossensíveis.
2. Lençóis 100% sintéticos, jamais! No mínimo, a roupa de cama tem que ser de fio misto, 50/50.
3. Troque as mesas e cadeiras de plástico da varanda, do refeitório ou da sala (da sala??? Deus!!!) por móveis rústicos e leves, de madeira ou vime. O quanto antes, please.
4. Se você puder trocar também as espreguiçadeiras de plástico da piscina por espreguiçadeiras de liga leve ou madeira, com colchonetes, sua pousada vai ganhar um upgrade no ato.
5. Monte um ambiente de repouso e leitura num lugar ventilado e silencioso.
6. Peça gentilmente que a TV dos quartos seja mantida no volume mínimo depois das 10 da noite, e os hóspedes vão colaborar.
7. Se o presunto que é vendido na sua praia é de má qualidade, não sirva presunto no café da manhã.
8. Sirva pelo menos um item típico da sua região (fruta, especialidade ou doce) no café da manhã. Explique o que é e como se come. Varie o máximo que puder.
9. Procure ter peças do artesanato de sua região incorporadas à decoração ou à mesa do café da manhã.
10. Sempre que possível, deixe o hóspede fazer check-out depois da praia. O check-out ao meio-dia é um sistema que não faz nenhum sentido num lugar de praia. Aliás, por que não se institui o check-in e o check-out praiano às 5 da tarde? Todo mundo sairia ganhando.
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