Carnê (minha crônica no Divirta-se do Estadão)

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Ilustração | Daniel Kondo

Hoje o conceito soa estranho, mas houve um tempo – nem tão distante assim – em que os filhos sonhavam em sair da casa dos pais o mais rápido possível. Comecei a trabalhar cedo, e por isso antes mesmo de fazer 19 anos já estava morando sozinho.

Os móveis mais altos da sala (e também do quarto, que ocupava o mesmo cômodo) eram duas caixas de som de 90 centímetros de altura, que eu tinha herdado do meu irmão mais velho, cinco anos antes, na vez dele sair de casa.

(Naquele tempo o único eletrodoméstico que um adolescente podia possuir no quarto era um aparelho de som. A primeira TV portátil em quarto de criança só foi vista uns dez anos mais tarde.)

Entre a porta da casa dos meus pais e o meu novo apê fiz a minha primeira dívida: um carnê em dez prestações para pagar a geladeira, o fogão e a televisãozinha (que ficava no chão, à mesma altura do colchão).

Em 1983, um crediário em 10 prestações fazia o preço final duplicar — ou triplicar (já não lembro). Mas isso não era tão grave assim, porque duas vezes por ano o seu salário dobrava nominalmente. Era o que se chamava “dissídio”. Que saudade.

Assim como hoje, eram tempos de grande mobilidade social. Só que ao contrário. No primeiro salário pós-dissídio você pertencia à classe B ou C, mas três meses depois já estava na D ou E.

Quando a inflação apertou mais – e antes de inventarem o reajuste mensal de salários (sim, crianças, já houve isso também) – os crediários longos simplesmente desapareceram.

No primeiro dia do primeiro mês do seu salário novo (30 dias antes que entrasse na conta), você saía comprando tudo o que podia e parcelando em três vezes, que era o máximo que se conseguia. Só as companhias aéreas continuavam vendendo em 10 prestações; talvez por isso não tenha sobrado nenhuma.

Hoje todo mundo continua comprando em 10 ou 12 vezes, ainda que o preço final acabe dobrando. E mesmo sabendo que no meio do carnê não vai rolar um dissídio de 100%.

Só se vive uma vez, certo? Errado. Brasileiro que é brasileiro acredita piamente na reencarnação. Voltaremos pelo menos 10 vezes. O problema são os juros e a correção.

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14 comentários

Ah, eu lembro que qd eu queria lago eu pedia à minha mãe, aí dizia qt custava e se ela demorava uma semana pra responder eu tinha que ir lá ver de novo qt já era pra ela me dar o dinheiro rsrs péssimos tempos o da inflação!

Nossa, peguei isso tudo, mas de uma perspectiva diferente, menos independente. O máximo do planejamento era sacar o dinheiro do estágio e ir à casa de câmbio mais próxima converter tudo em dólar para o dinheiro durar mais.

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