O enviado de Deus chega a Galinhos (crônica do baú)

Galinhos

Para marcar o lançamento dos guias de Galinhos e de São Miguel do Gostoso aqui no Viaje na Viagem, estou ressuscitando uma crônica publicada em 2005, na revista Época. Foi durante a minha Expedição Pé na Areia (os leitores vintage se lembrarão).

Quando eu virei da BR para pegar a estradinha que me levaria ao vilarejo potiguar de Galinhos, elas estavam ali, arrumadinhas, na beira da estrada: uma malona, uma maleta, três mochilas, uma caixa. O dono da mudança estava ali perto, acocorado numa sombra. Resolvi parar.

– Deus é fiel!


Galinhos
Slow beach

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Foi o que ele falou para mim, antes mesmo de começar a colocar a carga no banco de trás. Em dois minutos e meio, eu já sabia toda a sua história. Ele tinha ido a São Paulo visitar uma irmã que não via fazia 18 anos. Foi de ônibus, voltou de avião. “BRA?”, eu perguntei. Não: Gol. Pelo telefone, ele entendeu que tinha direito a 23 quilos de bagagem, e o que passasse disso ia custar R$ 8. Na hora do embarque, descobriu que era R$ 8 por quilo. Ele ia ter de pagar R$ 230. Só tinha R$ 150 no bolso. Resolveu desistir da viagem. Mas daí a moça do balcão deixou por R$ 100.

– Pra você ver como são as coisas de Deus!

Gostou de São Paulo. Foi muito bem tratado pela irmã. Matou as saudades, comeu bem, passeou, mas não se mudaria para lá, não.

– O cabra sai de casa de manhã e não sabe se volta à noite. Isso é vida pra um filho de Deus?

Nunca tinha andado de avião. Gostou. É rápido, e não precisa nem tomar banho pelo caminho. Não deu medo nem nada. Quando chegou a Natal, foi até a rodoviária. Descobriu que o próximo ônibus para Galinhos só ia sair na sexta. Era quarta. Ele resolveu ir assim mesmo, descer no entroncamento da BR, colocar a malona, a maleta, as três mochilas e a caixa na beirinha da estrada e esperar.

– Eu pensei: quarta é feriado, e se Deus quiser vai passar muito carro pra me dar carona.

Até a uma da tarde, porém, só tinham passado dois buggies. E nada de alguém parar, ou ao menos olhar para onde ele estava. Então ele pediu:

– Ai, meu Deus, me arruma um carro pra eu sair daqui!

Foi então que eu apareci na BR, virei no entroncamento e parei.

– Foi Deus que enviou você!


São Miguel do Gostoso dicas
Onde o vento faz a curva

Não que Ele tenha me avisado – mandado um sinal, uma luz, um e-mail que fosse. Podia até ser uma missão, mas não estava protocolada, entende? Na hora eu fiquei com vergonha de dizer a quantas pessoas eu já tinha negado carona só naquela manhã. Não, eu não podia decepcionar o meu caroneiro. Até porque estava gostando desse emprego de enviado de Deus.

Se bem que… puxando pela memória… talvez Deus esteja por trás do que aconteceu na minha primeira passagem por Galinhos. Eu estava a bordo de um jipão que ia de Natal a Fortaleza pelas praias. Um pouco antes de Galinhos o jipão fez o favor de quebrar – o que nos obrigou a pernoitar por lá até que mandassem um jipão substituto de Fortaleza.

galinhos

Nunca agradeci tanto por uma pane automotiva. Graças a ela eu pude ver o pôr-do-sol em Galinhos. E pude me apaixonar por essa península de areia onde tudo é rústico e arrumadinho e sincero. Na maré alta o mar forma uma piscininha natural na areia que atrai os nativos. (Nativo sabe das coisas, e só pega praia quando a praia é boa – se tem piscininha, se é de lagoa ou de rio.)

Comi búzio – o molusquinho que os paulistas chamam de vôngole, os portugueses de amêijoa e os catarinas de berbigão. Vi as jangadas voltando ao pôr-do-sol. Dormi numa pousada charmosa. Precisei prosseguir viagem. Por quê? – eu pergunto. Por que eu mal chego a Galinhos e já tenho de sair correndo?

Vamos fazer assim, Deus: da próxima vez, me envia pra ficar uma semana, combinado?

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8 comentários

Lembranças. Fiquei a lembrar das três vezes que fui a Galinhos, com minha esposa e filhos. Dos passeios de bugue, do passeio de barco com o mestre Totó, da pacata vila, dos jegue-táxis, do primeiro banho de mar lá, das impressões e sensações que ficaram na memória. Hoje acho que terei de dar uma olhada nas fotos…

Ahhh… essas suas cronicas, é que fazem uma visitinha aqui no horário do almoço te inspirar o dia inteiro… E sem menosprezar os textos das boias, que são ótimos, mas essas poesias viajandonas… Obrigada!!!

Grande crônica! Eu invejo quem leva essa vida pacata, sem ansiedade. Nós, viajantes conectados, só admitimos viajar munidos de vários cartões de crédito, débito, dólar, chips de várias operadoras, reservas de hotel e transfer feitos com várias semanas de antecedência, adaptadores de tomada, cadeado para malas e por aí vai….

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