Freire’s vintage: País esperto, 500 anos de praia

Freire's Brasil Praias, 2001

Como deu certo no meio da semana, repito hoje a tática de desenterrar textos que originalmente precisaram do abate de árvores que não tinham nada a ver com isso para ser lidos. Este é o capítulo do Freire’s, meu guia de praias de 2001. O que será que eu mudaria nele hoje? Segunda feira eu penso nisso 😯

Nenhum país do tamanho do Brasil é tão dependente de praia quanto o Brasil. Se a Austrália é uma ilha que se pretende um continente, o Brasil é um continente que se comporta como uma ilha. Somos a única civilização deste planeta que considera “não ter praia” o primeiro defeito de qualquer cidade. São Paulo é chata porque não tem praia. Brasília é um porre porque não tem praia. Belo Horizonte só não é perfeita porque não tem praia. Porto Alegre é infeliz porque não tem praia. Curitiba vai ser eternamente polaca porque não tem praia.

(Florianópolis é o máximo porque tem praia. Salvador, Recife e Fortaleza são invejáveis porque têm praia. O Rio só não acabou porque ainda tem praia. Maceió é politicamente tão complicada — mas que mar lindo, não?)

É preciso ser mineiro, goiano, mato-grossense ou indefensavelmente interiorano para não morar a no máximo 200 km de uma praia. (Até Manaus tem praia. De rio, mas tem.) Temos não somente matéria-prima em abundância, como acima de tudo uma cultura praiana singular. A vocação marítima dos portugueses se transformou, em areias brasileiras, em vocação balneária. Ditamos a moda em roupas de banho, inventamos o frescobol (beach tennis), o futebol de areia (beach soccer) e o futevôlei (beach nada, por enquanto). Caprichamos até na trilha sonora: das canções praieiras de Dorival Caymmi ao sal-sol-sul da bossa nova, nenhum povo cantou tão bem os prazeres da vida à beira-mar. Quando vamos à praia, estamos exercendo nossa brasilidade, mais ou menos como um francês demonstra seu civismo ao comer escargot. Somos a única raça de nossa espécie que não conseguiria sobreviver sem água salgada.

O primeiro sonho de consumo de toda família de classe média sempre foi uma casa na praia. Podem privatizar as telefônicas, as distribuidoras de energia e até a Petrobrás, mas uma coisa o brasileiro nunca permitirá: que a praia deixe de ser pública. Nossas praias não são apenas praias — são praças, são parques, são verdadeiros tratados de antropologia em 3-D. Nossas praias são a sala de estar metafórica da nação.

A pergunta que se impõe é: se moramos quase todos tão perto de uma avenida beira-mar, por que sempre estamos querendo ir a uma praia distante? Simples — porque, quando o assunto é sol, areia e mar, somos gourmets. Queremos variedade. Queremos novidade. Queremos algo melhor do que temos do ladinho de casa. E o que faz uma praia ser melhor, ou mais interessante, do que outra? Num primeiro momento, a beleza natural. A cor do mar. O grau de preservação da vegetação. A dificuldade de acesso. A baixa
densidade demográfica — ou, de preferência, a ausência total de freqüentadores.

Mas não. Não é só isso. Praias desertas e inóspitas são bonitas em fotos e em guias de ecoturismo. Você e eu queremos praias difíceis de chegar, sim, mas que não nos custem pneus furados, carros atolados ou bolhas nos pés. Praias freqüentadas por pouca gente — o mínimo de gente possível, para falar bem a verdade –, mas gente interessante. Com uma cervejinha gelada (ou uma caipiroskazinha, se não for pedir demais), mas sem cadeiras de plástico (o horror! o horror!) nem guarda-sóis com propaganda de cigarro. Se esse paraíso ficar perto de um vilarejo rustiquinho, simpático e que não conste do cardápio das grandes operadoras de turismo de grupo, tanto melhor.

E como descobrir esses lugares antes que acabem? Não é lá tão difícil. Basta ir na cola da garotada, dos mochileiros e dos alternativos em geral.

Em todo canto interessante do mundo é assim. Primeiro chegam os malucos: hippies, aventureiros, porra-loucas, maconheiros, surfistas, naturebas, vagais full-time. São eles que, invariavelmente, descobrem os pontos do mapa onde vale a pena ir. Atrás deles chegam os descolados: profissionais urbanos, viajados, caçadores de novidades, dispostos a torrar uma grana federal para levar uma vida sem luxos. São eles que põem esses lugares na moda e fazem gente como eu e você ter vontade de ir lá. Quando os descolados conseguem se instalar de maneira ecologicamente correta (ou seja, sem causar a extinção ou a migração dos malucos), criam-se as condições ambientais ideais para o surgimento de um ecossistema formidável. Porque os malucos têm tempo. Os descolados têm dinheiro. Na mão das pessoas certas, tempo e dinheiro fazem maravilhas por um lugar interessante.

Só tem um problema. Até quando um lugar interessante consegue resistir sem que instalem um loteamento de casas de veraneio, ou um resort, ou uma barraca conveniada com a Soletur — ou tudo isso junto? Nunca se sabe. Pode levar anos e anos para acontecer. Pode rolar semana que vem.

Mas sem saudosismo, please. Não há nada pior do que a frase-padrão de todo mundo que volta a uma praia que conheceu na encarnação passada: “Ih, acabou”. Se uma praia se transforma a ponto de não interessar mais a você, é hora de levantar acampamento. A essas alturas os malucos já colonizaram algum outro lugar bacana, e os primeiros descolados estão chegando com as limas-da-pérsia para a caipiroska.

Por outro lado, é evidente que essa estratégia de praia-arrasada não pode durar indefinidamente — afinal, vai chegar uma hora em que não restará mais nenhum pedacinho da costa para ser descoberto, colonizado, hypado, popularizado e finalmente degradado. Será que tem jeito? Talvez. Um dia, lá pelo final dos anos 70/comecinho dos 80, tivemos o bom-senso de resolver que nossas praias não seriam mais uma série repetitiva de Camboriús, Guarujás e Guaraparis. Pois agora já está em tempo de termos o bom-senso de decidir que nem todas as nossas praias precisam ser iguais a Porto Seguro. Não que Porto Seguro seja ruim — Porto Seguro é ótimo, à sua maneira. Só não precisa ser replicado em todas aquelas cidadezinhas anunciadas pelas operadoras nos jornais de domingo.

Aliás, a região de Porto Seguro funciona como o microcosmo perfeito para se estudar o avanço da indústria do turismo e a tentativa de resistência dos malucos e descolados. De um lado do rio Buranhém você tem Porto Seguro propriamente dito: o maior pólo de vôos charters do Brasil, destino dos pacotes de viagem mais baratos do mercado em qualquer estação. Atravesse o rio, e você chega ao Arraial d’Ajuda, que já foi uma meca hippie, mas com o tempo foi se transformando no bairro transadinho de Porto Seguro — uma versão menos pretensiosa de Búzios. Continue na direção sul  pela velha estradinha de terra (hoje praticamente sem uso), e em algum lugar no alto de uma falésia você vai encontrar as obras daquele que promete ser o mais sofisticado Club Med do país. Siga comendo poeira pela estradinha e logo você chega a Trancoso, charmoso vilarejo de dupla personalidade: popular de dia (quando é invadido por ônibus vindos pela nova estrada de asfalto) e descolado das cinco da tarde em diante. 20 quilômetros de solavancos depois, a guarita do condomínio Outeiro das Brisas protege a frágil e paradisíaca Praia do Espelho do roteiro das excursões (mas deixa passar kombis e vans). Mais 20 km (esburacados, e com três pinguelas que dão medo de atravessar) e você vai dar em Caraíva, última trincheira da garotada, dos naturebas e dos alternativos, que se organizam pelo não-asfaltamento do acesso, pela não-chegada da energia elétrica e pela não-exaltação do lugar em guias como este.

Mais didático, impossível: num trecho de apenas 70 km de litoral você encontra seis desfechos diferentes para o mesmo “Você Decide”. Porto Seguro é uma máquina de férias, funcionando a todo vapor. O Arraial d’Ajuda é sua versão “light” — cujo maior mérito é mostrar que é possível haver uma versão “light” para esse tipo de turismo. O futuro Club Med vai dar um toque Sauípe à região: um resort completo e auto-suficiente no meio do nada. Trancoso, badalada além da conta, luta para não virar o próximo Arraial d’Ajuda. O Espelho, saindo do anonimato, luta para não virar a próxima Trancoso. Caraíva luta para nem entrar nessa discussão. Se fosse possível congelar tudo como está hoje, um hipotético Ministério do Turismo Praiano teria seis modelos de ocupação, prontos e acabados, capazes de atender a seis públicos diferentes, todos pagadores de impostos e igualmente filhos de Deus.

É esse degradê de climas e usos que precisa ser preservado — não só na região de Porto Seguro, como em toda a costa brasileira. Enquanto Jericoacoara continuar diferente do Beach Park que continuar diferente da Praia do Rosa que continuar diferente de Morro de São Paulo que continuar diferente de Maceió que continuar diferente de Itaúnas que continuar diferente de Paraty que continuar diferente da Ilha do Mel que continuar diferente de Salvador que continuar diferente da Praia de Pipa que continuar diferente de Itacaré que continuar diferente de Porto de Galinhas que continuar diferente de Ilhabela que continuar diferente de Sauípe que continuar diferente do Rio de Janeiro, sempre haverá um jeito novo de renovar aquela marquinha de bronzeado.

35 comentários

Prezado Ricardo, boa noite!

Adquiri, no site Submarino, os dois últimos exemplares disponíveis do FREIRE´S (e, até onde sei, ao menos nas grandes lojas na Internet, são os últimos dois mesmo!).

Entretanto, na entrega, descobri que tratar-se da “versão de bolso”.

Fora as dimensões, há diferença entre a versão de bolso e a versão normal? Pergunto isso pois a versão normal ainda está disponível em sebos!

Obrigado, desde já, pela atenção!

    Olá, Juliano! Quem responde é a Bóia. Falei com o Ricardo Freire e ele disse que nunca saiu um Freire’s de bolso, não. A edição de bolso é do 100 dicas para viajar melhor. O Freire’s tem um formato um pouco menor que um livro comum, mas é “de bolsa”, não de bolso. De todo modo, o livro hoje tem só valor histórico e sentimental, viu? O campo foi feito em 2000 e 2001!

Se eu já tivesse 2 licenças-prêmio pra tirar eu me candidatava!
Será que não aparece mais ninguém com um semestre disponível para morar em Sauípe?

Ah, eu sou da época em que acabara de ser asfaltada a Rio Santos e Camburi (pasmem) ainda era de malucos e descolados, hahahahaha.

Riq, eu acrescentaria ao brilhante texto um terceiro passo que percebo: em seguida aos descolados, vem as patricinhas e mauricinhos que leram sobre a praia em algum guia wallpaper da vida, elas com bolsa e sandália alta, eles com gel e camisa lacoste na praia. Depois, na cola, vem toda a galera.

Minha praia predileta ever: Praia do Rosa. Saudades de Floripa. Alguém tem notícias recentes de lá? Já descambou?

    Estive na Praia do Rosa há cerca de um ano, e continua bem legal. É uma praia que mora no meu coração e sempre volto lá. Os moradores e donos de pousadas/restaurantes protegem bem o lugar, cuidando para não ficar como a vizinha Ferrugem, que anda meio descuidada.

Outra coisa legal de observar, eu acho, é como algumas praias mudaram radicalmente desde que o primeiro Guia de Praias Freire’s saiu do forno.

Carneiros ainda era um local de difícil acesso, Galinhos era fora do mapa, Caraíva era um reduto neohippie, e o Espelho era uma incógnita sobre o seu futuro.

Caro Ricardo, esses dias li a matéria sobre você na revista da Gol e confirmei a simpatia que tenho por você desde a VIP de algum tempo atrás. Espero que você volte logo ao Ceará (não só Canoa e Jeri), pra conferir de perto como o estado tá se esforçando pra melhorar a qualidade dos serviços. Queria muito ver isso aqui nas páginas do Viage na Viagem em posts atualizados, completos e bem humorados, que você faz como pouca gente. Quando decidir, estamos à disposição… Abraço.

O quê!? Super atual!!!
É mesmo mania depreciar onde não tem praia…que feio. Estive em Cabo Frio no último verão e só vi sujeira nas praias, tinha de tudo, argh! Entrar na água, nem pensar. Ainda corre-se o risco de furar o pé com um pedaço de vidro ou lata. E pensar que as tartarugas marinhas engolem os sacos plásticos (que o homem joga fora) achando que é alimento. Mas, por outro lado, temos praias bucólicas e esquecidas por aí (ainda bem!)
Bia
http://www.biaviagemambiental.blogspot.com

    Cabo Frio já era há pelo menos uns dez anos…

    Mas o Vnv realmente é atemporal, concordo. Não sei quais foram as condições contratuais à época, mas eu acharia interessante que o Ricardo pudesse disponibilizar o livro para download em PDF. Não há mais edições à venda, não há mais receita para a editora (que acho que nem existe mais) nem para o autor, então talvez isso possa ser feito. Não sei se esbarra na questão do domínio público, que só rola depois de 100 anos. Em 2098 a gente pode baixar o livro? 😉

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