Israel: os diários hilários do Vitor Knijnik

Jerusalém

Meu conterrâneo Vitor Knijnik é um dos caras mais engraçados que eu conheço (e aí incluo também aqueles que eu conheço só de ler). Uma pequena amostra do talento do cara pode ser vista nos seus Blogs do Além, que saem toda semana na Carta Capital, ficam arquivados aqui e acabam de ganhar a categoria Blogwurst no prêmio The Bobs, da Deutsche Welle (a “BBC” alemã), destinado ao melhor blog humorístico do ano. No mundo, pípols. NO MUNDO! Pois é com muita honra (e nenhum cachê!) que o Viaje na Viagem republica o diário de bordo do Vitor por Israel, em 2006, originalmente publicado na revista Propaganda. Divirtam-se!

Fui a Israel sozinho durante o carnaval de 2006. Minha viagem não foi motivada por nenhuma busca espiritual. Não sou religioso, no máximo temente a Darwin. Eu queria simplesmente, como judeu, saber como é a vida num país judeu. Contratei um guia – que me ajudou muito a entender várias coisas e a desentender outras tantas. De lá, enviei dois e-mails para amigos, contando minhas impressões. Ao reler tais textos, para escrever este, encomendado pela revista Propaganda, confesso que gostei de reencontrar o sabor daquele momento, razão pela qual decidi publicá-los aqui. Apenas suprimi alguns trechos muito pessoais e outros muito cifrados. Portanto, aos que lerem isto, imaginem-se recebendo um e-mail meu, enviado da Terra Prometida.

No Muro das Lamentações
Jerusalém, 26 de fevereiro de 2006

Em fevereiro, tem carnaval, tem carnaval, sou Grêmio e tenho uma sabra chamada Rebeca.

Pois é, carnaval aqui nem teria sentido. Quer dizer, talvez nem fosse notado nessa terra onde o que não falta é gente fantasiada. Os blocos e as escolas nem chegariam a sair. Ficariam presos em debates sobre quais seriam as verdadeiras formas judaicas de se brincar o carnaval. O confete pode ser jogado para cima? E com a mão esquerda? Seria o Rei Momo uma forma de adoração?

No meu primeiro café da manhã no hotel, perguntei a um garçom de quipá onde estava a água. Ele me apontou para três jarras que estavam bem à minha frente. Constrangido, desculpei-me. E ele emendou: “Tudo bem, eu entendo. Ela é transparente”. Bem-vindo a Israel, pensei eu.

É assustadora a sensação de familiaridade que a gente tem aqui, em pleno Oriente Médio. Chega até a ser frustrante para quem está em busca de uma aventura exótica. O cheiro predominante é o dos bufês servidos nas festas das sinagogas de Porto Alegre. Os rostos no centro moderno de Jerusalém lembram muito um recreio do Colégio Israelita, onde estudei. Mas não é só isso o que causa essa familiaridade. Acho que o principal é o jeito das pessoas. Muito parecido com a família da gente. Já vi umas 30 tias Olga.

Aqui todo mundo tem razão. Mesmo os que não têm. Há sempre alguém discutindo em hebraico em voz alta, próximo ao limite do grito. Uma menina brasileira me disse que em português ela é muito educada, mas em hebraico vira barraqueira. É uma quase impolidez sem reverência a nada. E quando não é com rispidez, é com aquele humor que parece sempre querer dizer mais do que fazer graça.

Mesmo as pessoas que servem as mesas sempre têm uma tirada e se mostram tão seguras de si (OK, elas estão construindo um país, e eu só sou um turista). Há sempre a tal da lógica para regular seja lá o que for – o que causa certo desconforto. Fiquei com saudade dos submissos pobres do Terceiro Mundo.

Dá para se sentir muito seguro nas ruas de Jerusalém. Para começar, tem policiais e soldados por tudo quanto é lado. Mas, fora isso, há sempre muitas pessoas caminhando nas ruas num clima de total tranqüilidade. A grande ironia é que a maioria dos restaurantes – e até algumas ruas – tem um segurança árabe ou palestino com detector de metais na mão para fazer a inspeção. Imaginei até a entrevista de emprego desses sujeitos. Nome? Abdul. Experiência? Hamas.

Shabat

Esse negócio realmente pegou por aqui. Sexta-feira, por volta das 15h, já está todo mundo no clima. É Shabat shalom para cá e para lá. As lojas fecham. Todas. Muitos compram flores, e há judeus ortodoxos, de todos os tipos, andando com pressa pelas ruas. Nem todos vão ao Muro. A maioria vai às muitas sinagogas que existem em Jerusalém. Muito legal foi ver que, depois das rezas, grupos de pessoas saem caminhando pela cidade em direção às suas casas. Aliás, em Jerusalém, há sempre um grupo de pessoas caminhando. Deve ser uma das poucas cidades do mundo onde as pessoas têm esse hábito. O tribal aqui não é termo sociológico ou da moda. É prática. Nove e meia da noite, e a cidade já estava bem mortinha.

IsraelIsraelIsrael

Shabat no Muro

É uma experiência forte. De certa maneira, foi o lugar onde eu menos me senti judeu. Aquela gente é tão diferente e incompreensível que, por vezes, não parecem terráqueos. Michael, meu guia, começou a me apontar as diversas correntes de ortodoxias que iam surgindo. O engraçado é que ele apontava, e às vezes até segurava a figura em questão, como quem está diante de bonecos de cera. E o mais louco é que os ortodoxos nem faziam relação ao fato de estarem servindo a uma explanação. “Esses, com o cinto em cordão, rezam em hebraico, mas só falam em iídiche. Esses, de cinto mais largo, rezam coletivamente. Os que se balançam muito são os hassídicos. Esses só podem rezar em grupos de 10. Aqueles com chapéu de pele preta e quipá branca são ortodoxos americanos.” E assim por diante. Para falar a verdade, nem me lembro se essas descrições correspondem à realidade. Era um cardápio muito grande para se decorar. O clima é intenso, mas não chega a intimidar.

Uma coisa que achei curiosa é que há muitas prateleiras com livros de reza para qualquer um pegar. Quando o sol começa a desaparecer, o clima esquenta. Os hassídicos aumentam os movimentos, parecem estar numa festa rave – só que com um ecstasy mais poderoso. Crianças pequenas já seguram um livrinho na mão e se balançam imitando os pais. Quipás de papel podem ser pegas num aquário na entrada do muro. Não há nas imediações nada para comprar em alusão ao Muro. Nem miniaturas, nem pedacinhos de papel prontos para colocar nas fendas. Qualquer coisa dessas cairia na idolatria. Pecado grave.

As mulheres ganharam o seu “puxadinho” no Muro (depois falam dos ortodoxos!). Claro que é separado do muro dos homens. A parte destinada a elas não deve ser tão sagrada assim. Em determinado momento, quando o sol está se pondo, muitos se viram em direção contrária ao Muro para saudar a rainha de Sabá, uma espécie de cortejo da figura feminina antes de começar o dia de descanso. Faz sentido. A luz se vai, e a multidão de malucos se dispersa. Muitos deles saem andando de costas porque não podem mostrar a bunda para o Muro. Eu, hein?

O mais bacana é ficar olhando os rostos de diversas origens, de muitas partes do mundo, contorcendo-se em transe. É possível ver e sentir que há algo milenar ali e que aquilo é um dos poucos elos com o passado distante que está além dos livros, objetos e documentos. É um passado vivo. Dá para ver e sentir isso tudo. Só não dá para entender.

Hoje, fui a um restaurante em que a garçonete me perguntou: “O senhor vai à área meat ou dairy?”. Se os restaurantes kosher decidirem ainda ter uma ala para fumantes e outra para não fumantes, eles precisarão de quatro ambientes. É complicado ser judeu.

Curiosamente, não há muitas barreiras entre os turistas e as coisas sagradas. O próprio Muro pode ser tocado e apalpado à vontade. Na Igreja do Santo Sepulcro, dá para deitar sobre o mármore em que Jesus supostamente foi lavado e enfiar a mão no buraco onde a cruz teria sido fincada. Inclusive a Igreja é cheia de missas. Parece que ela não dá bola para a sua vocação natural de museu. A via dolorosa ou crucis, então, é uma desmoralização em termos de cenário. Os lugares sagrados ficam ao lado das tendas que vendem jogos de gamão, raquetes de praia e camisetas dos Teletubbies. Sou a favor de um cercadinho. Acho que Jerusalém não é para ser vista, mas usada.

Ah! Estou adorando. O que é um pecado.

Beijos,

Vitor

Em algum lugar de Israel

Haifa, Shabat shalom, 4/3/2006

Agora posso dizer. Não importa qual museu de Israel você visite – pode ser o Museu da História do Espremedor de Laranja –, todos eles acabam sempre com uma conclusão: é por isso que tem que existir o Estado de Israel. É um disco arranhado por eles mesmos. Espécie de realismo soviético sem o rigor formal. Achei até que já havia passado o período de catequese ingênua. Mas não. Hoje estava em Cesaréia vendo um vídeo sobre como Herodes construiu o maior porto da Judéia na antiguidade. E como é que acabou o filme? Isso mesmo: é por isso que tem que existir o Estado de Israel. Tudo isso ilustrado com cenas corriqueiras em propaganda eleitoral. Muita criança sorrindo, estudantes no computador, jovens fazendo esporte, lavoura sendo irrigada e crianças no exército. Sim, eu disse crianças. Basta olhar com mais atenção para as pessoas uniformizadas para ver que são bebês fardados. Alguns já com metralhadoras. E não importa o shape do jovem judeu. Gordinhos, franzinos, todos estão todos convocados. E, cá para nós, muitos judeus nascem com duas mãos esquerdas (eu mesmo sou um deles). E há um sem-número de adolescentes grandões, daqueles que andam só com a parte da frente do pé, circulando como homens que estão sendo treinados contra o Hamas e outros perigos maiores.

Fui a muitos museus. Em todos, encontrei mais de uma turma de soldados em volta de guias explicando por que tem que existir o Estado de Israel. Na entrada do Museu de Arte de Tel Aviv, como em todos os lugares, há detector de metais e uma inspeção rigorosa. Mas lá dentro, ao desviar meu olho de um Chagall, vi duas jovens munidas de metralhadoras comentando um Monet.

Por falar em arma, estava eu em Jerusalém passeando a esmo na cidade velha, mais especificamente no bairro muçulmano (que vive de vender artigos judaicos), quando passaram voando por mim vários adolescentes correndo e cantando. Resolvi segui-los. Podia ser uma liquidação de fim de inverno. Duas ruas acima, já eram 50 pessoas cantando abraçadas e dançando naquela formação que a gente faz em rodinha de casamento judeu. Dois soldados com metralhadoras viradas para o alto seguiam o cortejo. De repente, todos entraram numa espécie de túnel, que acabava num pátio, em que uma das paredes era a continuação do Muro das Lamentações. Então eles pararam de cantar e começaram a rezar, balançando-se para frente e para trás. Fiquei vendo tudo isso do túnel até que o guarda, com a metralhadora em riste, perguntou-me o que eu estava olhando. Primeiro em hebraico e depois em inglês.

– Só tô olhando – disse.
– Você é judeu? – perguntou o guarda.
– Eu?
– Com quem mais eu tô falando?
– Sou – disse eu tentando fazer uma cara de que sou judeu, mas nem tanto quanto aqueles lá.
– Então entra aí e reza ou cai fora.

Parei de rezar faz pouco.

Tenho mais uma história de Jerusalém. Estava eu com duas brasileiras que conheci em um museu, na Igreja do Santo Sepulcro. Na capelinha onde Jesus teria sido enterrado só cabem 4 pessoas por vez. Entrou conosco um mexicano com uma câmera de vídeo na mão já em operação (é incrível, pode tudo!). Fizemos aquele silêncio respeitoso e por isso ouvimos o mexicano sussurrar: “Jesus, acabou a bateria”. Até agora não sei se era um lamento ou uma súplica pedindo uma carga extra.

Hoje fui a Acre, cidade portuária histórica, habitada atualmente por árabes. Tem a quarta mesquita mais importante do mundo muçulmano. Agora veja a confusão: essa não é uma cidade de fronteira – o que não permite a peregrinação. Para complicar mais, o lugar vive de turismo. A maioria dos turistas são judeus em férias que estão rodando pelo norte.

Os habitantes não olham para a gente com grande simpatia. Há bandeiras de Israel hasteadas por toda parte, meio que para lembrar onde é que você está. E onde é que eles estão. Mulheres cobertas da cabeça aos pés passam de cabeça baixa. Cantos em árabe vinham da mesquita. O guia me informou que muitos dos habitantes árabes de Acre são cidadãos israelenses com direito a voto, previdência social e tudo. Na parte nova da cidade, apontou-me edifícios repletos de imigrantes russos recém-chegados. A maioria não sabe falar inglês, nem hebraico. Pensando bem, o prefeito de São Paulo não tem do que reclamar.

E, para acabar, fui a um restaurante self-service em Rosh Hanikra, extremo norte do país. Havia uma senhora que servia porções de carnes, aves e peixes. Ela perguntou-me se eu era russo. Judeu? Depois que ela soube que eu era um id brasileiro, botou por conta própria uma porção extra de peixe acebolado (tenho horror a cebola). É por isso que tem que existir o Estado de Israel.

Beijos,

Vitor

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33 comentários

gente que hilário!!!
realmente ele escreve muito bem, fazia tempo que eu não lia nada tão engraçado assim… vou dar uma olhada no blog, certo!

Estive em Israel no ano novo judaico qdo o estado completou 60 anos de existência. Foi uma delícia, ao reler seu texto, relembrar as cenas únicas que aquele país proporciona. Mas “Jesus, acabou a bateria” foi imbatível! Parabéns pelo texto, divertidíssimo e, ao mesmo tempo, extremamente sensível.

‘Cada vez que a classe C melhora o seu poder de compra, a área vip fica mais cara’:-)

Especialmente o mexicano… “Jesus… acabou a bateria”!

    Mas afinal, Jesus deu uma carga extra na bateria do mexicano ou ele teve que se contentar em comprar um DVD pirata no camelô do lado de fora?

A-d-o-r-e-i. 😆 Ainda mais que o Vitor é gaúcho e gremista, não necessariamente nesta ordem, he, he…
Assinado
gaúcha e gremista (nesta ordem 😉 )

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