Coca Cola azul

A Coca-Cola azul e outros baratos de Parintins (1999)

Você vê as coisas mais incríveis em Parintins. Para começar, você vê a Coca-Cola azul. A Coca-Cola azul está em todos os anúncios de Coca-Cola expostos na parte da cidade que cabe ao boi Caprichoso. Você vê a Coca-Cola vermelha, também, mas só na parte da cidade que cabe ao boi Garantido. Parintins é dividida entre Coca-Cola azul e Coca-Cola vermelha assim como Belfast é dividida entre católicos e protestantes. Só que a Coca-Cola azul não existe.

Não existe mas está ali, azulzinha da silva, sinalizando que as coisas mais incríveis podem ser vistas todo dia 28, 29 e 30 de junho em Parintins. Por exemplo: você vê 30 mil pessoas deixarem Manaus e descerem 420 km de barco pelo Rio Amazonas para fazer farra e torcer pelos bois Caprichoso e Garantido. Você vê uma explosão de talento, energia e organização num lugar pobre, atrasado e isolado. Você vê a melhor coisa (peça? desfile? ópera? balé? campeonato?) atualmente em cartaz neste país.

Você se pergunta o tempo todo: como pode? Como pode uma ilhazinha perdida no meio da selva fazer um espetáculo mais bonito que o desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro? Como pode você agüentar seis horas de apresentação todos os dias e ainda querer mais? Como pode você passar três dias numa cidade feiosa e superlotada, sem hotel nem restaurante, e sair falando bem? A resposta é: se pode Coca-Cola azul, pode tudo.

Boi? Que bicho é esse?

Pode-se dizer, meio irresponsavelmente, que o festival folclórico do boi-bumbá é o resultado do reencontro de dois fenômenos que saíram de São Luís do Maranhão e chegaram por caminhos diferentes a Parintins: o bumba-meu-boi e Joãosinho Trinta.

O bumba-meu-boi foi trazido pelos migrantes maranhenses que vieram trabalhar na extração de borracha da Amazônia. Resumindo bastante, é uma festa junina na qual se encena a lenda de um boizinho que é morto e depois ressuscitado por um médico. No Amazonas, a história ganhou cores locais: o médico virou pajé, e o homem que matou o boi é capturado por uma tribo de índios. O ritmo também se modificou — perdeu seu parentesco com o maracatu, ficando mais lento e cadenciado, mais indígena, e com um quê de brega amazônico na levada.

Já Joãosinho Trinta chegou foi pela televisão, mesmo. É inegável a influência do colorido, do luxo e do gigantismo do carnaval carioca pós-Joãosinho na concepção das fantasias e alegorias dos dois bumbás. (Principalmente no Caprichoso — que, pelo que eu vi, já superou o mestre.)

O que os bumbás têm que as escolas de samba não têm?

Em primeiro lugar, luz de show. Além dos refletores do bumbódromo, os bois usam spots coloridos, montados em torres com rodinhas, para variar cor, foco e intensidade ao longo do espetáculo. Em muitos momentos, a apresentação é iluminada apenas por velas acesas na arquibancada, fogos de artifício e fumaça colorida. É muito mais bonito que réveillon na praia.

Em vez de passarela, os bois têm arena, o que muda totalmente a natureza da apresentação. As escolas de samba, coitadas, só podem andar para a frente; já os bumbás podem variar infinitamente a maneira de entrar, as coreografias e o modo de ocupar o “palco”.

Os bumbás também podem contar com uma variedade de músicas. No lugar de repetir o mesmo samba-enredo doidão o desfile inteiro, os bumbás lançam todo ano doze toadas doidonas, que são cantadas em momentos diferentes da apresentação. Eles também podem trazer de volta toadas clássicas, consagradas em festivais passados. É como se os puxadores da Mangueira pudessem cantar os três sambas-enredo finalistas no concurso da escola daquele ano, e ainda lembrar um ou outro samba da antiga para animar a torcida.

E por falar nela, a quarta vantagem dos bois com relação às escolas de samba é a galera. Cada bumbá tem 15 mil pessoas na arquibancada, ensaiadas como ginastas russos e animadas como você nunca viu em nenhum estádio brasileiro, pulando e fazendo coreografias impecáveis três horas sem parar. Não dá para não se arrepiar.

Como a coisa se transformou nessa loucura toda?

Caprichoso e Garantido se apresentavam desde sempre em seus bairros, nos lados azul e vermelho da cidade, se encontrando na linha divisória da Praça da Catedral. Um belo dia, parintinenses exilados em Manaus abriram o Bar do Boi, onde as duas galeras podiam manter acesa sua rixa mesmo longe da cidade. O povo de Manaus descobriu o Bar do Boi, gostou, e começou a viajar a Parintins ver os bois ao vivo no festival. De olho nos dividendos políticos, Amazonino Mendes, em sua primeira encarnação como governador, construiu o Bumbódromo de Parintins para 35 mil torcedores. Hoje os dois bois mantém “currais” em Manaus funcionando o ano inteiro, que chegam a atrair 20 mil pessoas em seus ensaios. Nos três dias do festival, Manaus pára, Parintins implode, o Amazon-Sat transmite ao vivo para a Amazônia inteira e o repórter de VIP fica sob o efeito da Coca-Cola azul.

Qual a diferença entre Caprichoso e Garantido?

Caprichoso é o boi da elite, Garantido o bumbá do povão. O Caprichoso capricha na inovação, enquanto o Garantido garante a tradição. A batida do Caprichoso é mais acelerada, e as músicas, mais comerciais. Já a batucada do Garantido se mantém fiel à cadência lenta da toada, e as letras são mais épicas. O Caprichoso tem a precisão técnica da Imperatriz Leopoldinense, o luxo das escolas de Joãosinho Trinta e a beleza de movimentos dos times de Telê Santana. O Garantido é emoção pura: Mangueira, Flamengo, Corinthians (no campo e na arquibancada). O interessante é que um torcedor nunca pronuncia o nome do outro boi — refere-se a ele apenas como “o contrário”.

Joãosinho Trinta da floresta

    O grande trunfo do Caprichoso é seu diretor de arte, Simão Assayag, um homem da Renascença em ação no meio da selva. Engenheiro civil de formação, Simão cria os temas, comanda os artistas, faz uma ou outra letra, inventa, constrói e põe em cena as alegorias mais complicadas, mais criativas e mais perfeitas que você vai ver fora da Disney.

Fiel amazônica

    A alma do Garantido é a galera, que dá um show mesmo quando suas alegorias de mão são mais pobrinhas que as da torcida do contrário. Dentro da arena, sua força maior está no carisma da batucada (chamem Padre Miguel para um tira-teima!) e na voz privilegiadíssima do levantador de toadas Davi Assayag (da mesma família de Simão) — que, por ser cego, se apresenta de mãos dadas com uma indiazinha de fechar a Zona Franca.

Como são as apresentações?

O que se vê no Bumbódromo — além da Coca-Cola azul — é o sincretismo de quase todas as religiões nacionais: missa, animismo, carnaval, São João, futebol.

A cada noite os dois bumbás fazem um espetáculo totalmente diferente. Muda o tema, muda a cartela de cores, mudam as coreografias e as alegorias. Daria para dizer que você assiste a duas cerimônias de abertura das Olimpíadas por noite — mas isso seria tremendamente injusto com os bumbás, já que Parintins põe qualquer Olimpíada no chinelo.

Os bumbás têm apresentadores que vão narrando o espetáculo para que ninguém, do povão ou do júri, perca nenhum detalhe. “E agora, galera do Garantido, olha lá o que vai acontecer ali no alto da alegoria. O sol e lua se encontrando! É o encontro do sol com a lua, galéééééra!” É mais ou menos como ver o desfile ao vivo no Sambódromo e ouvir os comentários do Fernando Vanucci ao mesmo tempo.

Outra função dos apresentadores é cantar o número do quesito que está sendo julgado. “E olhem agora quem está chegando no alto da montanha! Concorrendo ao item 14: melhor pajéééé!”. Hollywood bem que poderia copiar. Em vez de gastar milhões de dólares em campanhas de RP para os jurados da Academia, era só colocar uma legendinha nos filmes: “E agora, preste atenção, se Deus quiser concorrendo ao Oscar de melhor atriz pela centésima vez, Meryl Streep!”. Ou: “Aí moçada, concorrendo ao Melhor Beijo do MTV Movie Awards, Gwyneth Paltrow e Joseph Fiennes!”. Quer dizer, sinto que estou me distanciando do assunto. (Deve ser a Coca-Cola azul).

As alegorias vão sendo montadas em módulos (que você não acredita como acabam encaixando tão bem), e sempre guardam ao menos uma surpresa. Geralmente, elas trazem escondidos os personagens mais importantes do boi: a sinhazinha da fazenda, a cunhã-poranga (a índia mais bonita da tribo), a rainha do folclore, o pajé, o próprio boi. A chegada de cada um desses personagens é saudada por uma salva de fogos de artifício e pelo delírio da torcida.

Boi high-tech

    A alegoria do Ritual da Montanha do Caprichoso deveria concorrer aos seguintes itens: Melhor Godzila, Melhor Jurassic Park e Melhor Episódio 1. Mais perfeita, só por computação gráfica.

Boi naïf

    A entrada mais emocionante do ano foi a do boizinho do Garantido, rasgando o coração de Lindolfo Monteverde, fundador do bumbá (uma alegoria de quatro andares de altura)

Os componentes (“brincantes”) vão entrando aos poucos, em tribos que dançam igualzinho aos documentários da TV sobre os índios do Xingu. Quando a arena finalmente fica cheia acontece o final apoteótico, com a encenação de um ritual indígena (que muda toda noite). Detalhe: enquanto galera do boi que está se apresentando não pára no lugar por quase três horas seguidas, a outra metade do Bumbódromo precisa ficar estática, senão perde pontos.

Ao final dos três dias de apresentações, você sai achando que a construção do Teatro Amazonas pelos barões da borracha não foi nada perto do que você presenciou. Acredite: a ópera de Parintins é muito mais impressionante que a de Manaus.

Para quem o repórter de VIP torceu?

Sou torcedor do Internacional; logo, vermelho. A toada “Vermelho”, do Garantido, virou até um hino informal da torcida colorada (o problema é que convidaram Fafá de Belém, que sabidamente sofre de hipotermia nos pés, para cantar na comemoração do título gaúcho de 97 — e depois disso o Inter, além de não ganhar mais nada, ainda inventou o Juventude como time grande). Viajei a Parintins, portanto, já com o boi escolhido.

Mas bastou a primeira apresentação do Caprichoso para me fazer, pela primeira vez na vida, torcer para alguma coisa azul que não fosse a Seleção Brasileira usando o uniforme B. O que confirma o que os nativos dizem — que a opção por qualquer um dos bois não tem nenhuma relação com preferências futebolísticas ou partidárias. Claro que me arrepiei com o Garantido, também. Mas achei o Caprichoso tão deslumbrante, que já estava praticamente lançando Simão Assayag para ministro da Cultura, Ciência, Tecnologia e Cunhãs-Porangas. Mas aí já devia ser excesso de Coca-Cola azul na cabeça.

Quem ganhou?

O Garantido, de lavada. Os jurados — catedráticos de folclore em universidades do Ceará e Pernambuco — não foram nem um pouco com a cara do luxo do Caprichoso, e se encantaram com a beleza ingênua do bumbá vermelho. Em compensação, acabaram dando para o Caprichoso um título ainda mais injusto: o de melhor galera de 99.

Domingo dia 3/7 no ar: voltando a Parintins, 17 anos depois

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6 comentários

Sim! Excelente texto! Já estou no aguardo pra observar o progresso geral desses 17 anos de festa e canetadas…
Abraços!!!!

Como é bom ler um texto bem escrito.
Maravilhoso, irônico e inteligente.
Parabens Ricardo!

Estou curioso para saber se, nesses 17 anos, o festival – e a própria Parintins – mudou muito. Aguardo por domingo 🙂 Abraço.

Ótimo texto, comentários e a Coca Cola Azul lá, sempre lembrada! Parabéns! Obrigada pelo resgate do texto para a internet. 🙂

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