Museu do Amanhã

A dispensa (temporária) do visto para gringos — e o (pouco) que se pode esperar disso

Museu do Amanhã

A primeira recomendação da Organização Mundial do Turismo para qualquer país que queira realmente fazer do turismo uma fonte importante de divisas é eliminar a barreira do visto de entrada.

O Brasil é um dos raríssimos países que adotam a tal política da reciprocidade diplomática, que pelo mais genuíno vira-latismo é apoiada por quase todo mundo que eu conheço, menos eu e uns dois ou três outros esquisitões. O que ninguém se dá conta é que país que exige visto de turista ou é um regime fechado ditatorial; ou tem paranóia de segurança; ou teme imigrantes ilegais; ou não entende o negócio do turismo. O nosso é claramente o último caso.

Por teimosia ideológica ou chauvinismo mal colocado, migramos oportunidades de emprego à mão-de-obra do Nordeste e da Amazônia para o Caribe, o México, o Peru, a Costa Rica, contribuindo para que o Brasil seja um exportador líquido de turistas, quando deveria ser um dos países mais visitados do mundo.

Imagine se o Brasil lançasse mão de medidas realmente agressivas para atrair turistas. Como, por exemplo, a isenção de IVA na hospedagem de 19% que os turistas estrangeiros têm no Chile, de 18% que têm no Peru e de 21% que têm no Uruguai. Ou a devolução de 18% de IVA na conta de restaurantes que os turistas ganham no Uruguai! Por que os governos chileno, peruano e uruguaio fazem isso? Para se humilhar no plano internacional? Para se rebaixar ante os visitantes? Não: para atrair moeda forte, gerar negócios e empregos da maneira capilarizada de que só a indústria do turismo, hoje em dia, é capaz. (Todas as outras indústrias, não sei se você notou, migraram para a China.) Mas vai explicar para um brasileiro que um hotel, aqui, pode custar menos para um gringo do que pra nós. (Só que, quando a gente vai pro Chile ou pro Uruguai, adora esse desconto, né? Às vezes é o fator decisivo na balança para batermos o martelo por um destino.)

Essa digressão sobre isenção de imposto para gringos (que não está em discussão e tenho que certeza que, nessa encarnação, nunca estará) é só para ilustrar como a questão do visto é ainda mais bizantina. Enquanto a gente impõe barreira de entrada para o turista americano, canadense ou japonês, o Peru abre a porta, estende o tapete vermelho e dá 18% de desconto na hospedagem. Tem como competir? Por isso é que, quando estive no Peru, em plena média temporada de setembro-outubro, as cidades turísticas estavam cheias de gringos. Enquanto isso, o Brasil se contenta com o turismo doméstico, que só funciona em feriado e férias. Fora de feriados e férias, nossos destinos turísticos estão batendo lata; em muitos lugares você não consegue sequer formar um grupo para fazer um passeio de forma mais barata. Perdemos a chance de que haja mais investimento, mais qualidade, mais infra-estrutura no turismo doméstico. Quem quer investir num setor com 10 meses de baixa temporada, que dificulta de propósito, com extremo afinco, a entrada dos clientes mais cobiçados do mundo?

O primeiro projeto para dispensar americanos, canadenses, japoneses e australianos do visto de entrada foi proposto na Câmara dos Deputados em 2005. (Na minha opinião, já tarde demais. Deveria ter sido proposto no primeiro dia depois da saída dos militares, que é o milieu em que a doutrina da reciprocidade faz sentido.) Nunca foi para a frente. Ano passado, finalmente, a idéia foi encampada pelo governo e agora conseguiu-se aprovar uma dispensa temporária de visto de entrada para visitantes dessas quatro nacionalidades, que desembarcarem no Brasil entre 1º de junho e 18 de setembro de 2016. A portaria foi publicada dia 30 de dezembro.

Eu deveria ser o primeiro a comemorar. Mas a portaria é tão tímida (para não dizer: envergonhada), tem um timing tão pouco conveniente, e está envolta num marketing tão pífio, que o meu medo é que não traga nenhum resultado palpável e acabe dando razão aos oponentes do fim do visto.

Arpoador

It’s not about the Olympics, stupid

Os autores da proposta do fim temporário do visto sabem que o projeto é apenas um balão de ensaio. A intenção é mostrar que o Brasil não acaba nem vai para a vala das republiquetas das bananas depois que o primeiro americano passar pela imigração sem ter requerido o visto com antecedência.

(A propósito, o fato de não exigir o visto prévio não tira o direito do agente de imigração de barrar um americano ou canadense ou japonês ou australiano na entrada. Exatamente como acontece com a gente na Europa. Fecha parênteses.)

No entanto, para que o balão de ensaio apresente resultados que provem a eficiência (ou a falta de eficiência) da medida em atrair mais turistas, seria necessário que vigorasse durante um período mais elástico, que não deixasse o turista refém de um intervalo tão curto para aproveitar a bonança.

O ideal é que funcionasse durante um ano inteiro. A Olimpíada daria o gancho para um ano em que o Brasil festivamente se abriria ao turismo internacional, levantando barreiras e oferecendo um pacote de facilidades tourist-friendly — uma espécie de Visit Brazil Year, embrulhado para divulgação numa grande campanha de marketing. A Tailândia fez isso nos anos 90 e rapidamente ascendeu à primeira divisão do turismo mundial. Desde 2012 eu prego essa idéia em palestras. No meu balanço da Copa, publicado no Estadão no fim de julho de 2014, escrevi que ainda dava tempo de fazer de 2016 um Visit Brazil Year. No finzinho de 2014 o ministro-tampão Vinicius Lages passou a ventilar a idéia de um Ano Olímpico do Turismo. Em 2015 o presidente da Embratur Vinicius Lummertz também andou falando em algo por aí.

Hmpf: o projeto foi capado primeiro pelo Congresso, que limitou a vigência da dispensa de visto só até 18 de setembro, e depois pela Presidência, que empurrou a data inicial de 1º de janeiro para 1º de junho.

Em vez do Ano Olímpico do Turismo, teremos o… Menos de 1/3 de Ano Olímpico do Turismo.

Por que a medida provavelmente será inócua

1 | A Olimpíada não precisa da isenção do visto

Os americanos, canadenses, japoneses e australianos que já tenham comprado seus ingressos ou pacotes para a Olimpíada e ainda não tenham providenciado o visto vão adorar não precisar enfrentar a burocracia dos consulados brasileiros no exterior para viajar.

No entanto, assim como aconteceu na Copa do Mundo, a exigência de visto não é um grande empecilho para o turista de eventos (a Alison McGowan do Hidden Pousadas Brazil chama de “eventeiro”). O mais difícil é conseguir ingresso e ter grana para hospedagem. Conseguir visto é só um perrengue a mais. Não existe outra Olimpíada acontecendo em agosto de 2016 no México, na Costa Rica, na República Dominicana, no Peru ou no lado argentino de Iguaçu. E mesmo que a necessidade de tirar visto fizesse muitos desistirem da viagem, naquele momento não seria uma questão crucial para o destino: há muito mais interessados em participar do que ingressos ou vagas em hotéis.

Na Copa, mesmo com o visto, os americanos foram o segundo maior grupo de visitantes estrangeiros, atrás apenas dos argentinos. Todas as cidades-sede estiveram cheias durante os jogos. O Rio já está lotado para a Olimpíada; não seria necessário criar nenhuma facilidade para a vinda do turista nessa época.

A medida só se justifica para essa época específica se a idéia for vender viagens a turistas sem-ingresso. É exatamente o que eu propus em 2010 para a Copa de 2014, no artigo Como fazer de 2014 a Copa do Turismo: minha sugestão era tirar o foco das cidades-sede e dos jogos e convidar o mundo a curtir o clima de festa da Copa em qualquer lugar do Brasil.

Para isso dar certo em 2016, porém, será preciso que o marketing incorpore alguma sinceridade. Se o Brasil fizer uma campanha fazendo de conta que liberou o visto para o americano poder vir para a Olimpíada, será dinheiro jogado fora. Acho que um esforço eficaz seria focar explicitamente, sem pudor, no viajante que nunca pensou em vir à Olimpíada. Algo como “entre junho e setembro de 2016, você não precisa de ingresso, nem de visto, para descobrir as belezas do Brasil”.

(Aliás, acho que vou fazer um postzito em inglês aqui pra Bóia…)

2 | A liberação não tira proveito do pós-Olimpíada

Depois da Copa, o Brasil se auto-inflingiu um novo 7×1: conseguiu não fazer absolutamente nenhum marketing turístico a partir do sucesso do Mundial entre os visitantes. Não houve nenhum follow-up, nenhum aproveitamento do saldo turístico positivíssimo do certame. Não convidamos os turistas dos países visitantes a retornar e visitar outros destinos brasileiros.

É provável que tenhamos terminado 2015 com menos visitantes estrangeiros do que em 2014, mesmo com o real em franca desvalorização. É um feito e tanto.

O fato da liberação do visto terminar para desembarques no dia 18 de setembro (4 semanas depois do final da Olimpíada, dia 21 de agosto) mostra que a miopia e a inércia que nos fizeram desperdiçar o momentum da Copa podem se repetir nos Jogos Olímpicos.

Durante três semanas (provavelmente) ensolaradas em agosto, o Rio de Janeiro será mostrado em todo o seu esplendor a todas as horas do dia para o mundo inteiro — e em especial para dois mercados onde o Brasil tem um potencial imenso de crescimento, Estados Unidos e Canadá. Os 21 dias de propaganda intensa do Rio certamente despertarão o desejo de muitos norte-americanos para vir ao Brasil. Seria o momento de começar, e não de terminar o programa de isenção de vistos.

(Sobre o Canadá: 1 milhão e 300 mil canadenses vão todos os anos a Cuba — nem Fidel nem Raúl jamais exigiram que canadenses fossem ao consulado cubano requerer visto de entrada. Mais canadenses viajam a Cuba do que à Itália ou à França. Com a isenção do visto, o Brasil teria possibilidade, no médio e no longo prazo, de abiscoitar uma parte desse contingente. Mas acordos comerciais levam tempo para ser feitos, os canadenses que procuram sol normalmente viajam de pacote, e inverno do ano que vem está fora da isenção do visto. O efeito da isenção no mercado canadense deverá ser próximo de zero.)

Minha esperança: que a liberação temporária faça alguma cosquinha no número de visitantes americanos (talvez na carona da valorização do dólar…) e faça a medida ser estendida ‘temporariamente’ até 2017, e então até o fim do verão de 2018, então até… para sempre, quando finalmente percebermos que a suprema humilhação internacional não está em isentar unilateralmente americanos e canadenses de visto de entrada. A suprema humilhação internacional (e um preju colossal na economia) está num país deste tamanho receber praticamente o mesmo número de turistas estrangeiros que o balneário de Cancún.

Atenção: isto não é um debate

Antes de terminar, devo esclarecer que os textos que produzo sobre esse assunto são apenas em modo desabafo. Já perdi esperança de convencer uma pessoa que seja de que a reciprocidade é uma tolice, uma barreira comercial auto-infligida que mina a nossa competitividade numa das poucas indústrias em que podemos competir com vantagens naturais. Também não tenho tempo para discutir com quem acha que o Brasil não tem condições de receber nenhum turista — já sei sua opinião e seus argumentos, não precisa me contar. Publicarei opiniões contrárias que sejam formuladas de maneira respeitosa, sem apelar a argumentos risíveis como “segurança nacional” ou “narcotráfico” (riscos que despareceriam magicamente se os Estados Unidos deixassem de exigir visto de brasileiros e não precisássemos mais da reciprocidade, certo?). Mas saibam os comentaristas desde já que não tenho paciência, tempo ou ânimo para replicar. (Investir um dia inteiro produzindo esse texto já saiu caro demais para mim; tenho muito trabalho atrasado.)

Só queria mais uma vez deixar registrado o que eu penso. Talvez um dia arqueólogos digam que faz sentido.

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61 comentários

É muito triste ver como o turismo é tratado nese país. Ir a Miami ou Cancun dá depressao, vendo cidades como o Rio ou alguma do litoral do nordeste com muito mais beleza natural, cultura e gastronomia recebendo em um ano a quantidade de turismo que Miami ou Cancun recebem em uma semana ( sei la se as quantidades sao essas, mas é algo absurdo nesse nivel). Vc falou muito bem da capilaridade da indústria do turismo, distribui renda rápidamente e em todos os niveis. Até o vendedor de biscoito Globo lucra mais com a cidade cheia. Mas vc tem razao em outra coisa: nada vai mudar nessa encarnação.

É tudo verdade! Mas nosso governo está mais para aumento de impostos do que isenção de impostos!! Sabe, mudar essa questão da reciprocidade precisa alterar a constituição e isso dá taaaaaaanto trabalho para nosso congresso… coitados, já trabalham taaaaanto de terça a quinta…

Talvez um dia possamos debater ideias.
Parabéns por dividir seu conhecimento conosco.
Te acompanho por que percebeu seu vasto conhecimenfo em turismo.

Comandante, concordo com o seu texto em genero, numero e grau!!!!
Fico indignada que o Brasil desperdíce tanto potencial turístico (e com isso alavanque a economia, pois o Turismo representa quase 10% da economia mundial, e supera outros setores como a indústria química (8,6%), a agricultura (8,5%), a educação (8,4%), a automação (7%) ou a bancária (5,9%). O turismo emprega diretamente 105 milhões de pessoas em todo o mundo, sete vezes mais que a indústria de automação e cinco vezes mais que a química.
É realmente lamentável que nossos governantes não se dão conta da importância que o Turismo só traz o crescimento da economia no Brasil.

Toda vez que ouço falar em reciprocidade lembro do que dizia há praticamente quarenta anos o grande Aparício Torelli – Barão de Itararé – o Brasil é um país com os pés firmemente plantados no chão, e as mãos também…

Adorei a frase da Mirella, somos realmente um verdadeiro “desperdício turístico”, com destinos fantásticos e únicos no planeta (Amazônia, Foz do Iguaçu, Lençóis, Rio, Pantanal), enfim…

Acho que qualquer ser pensante com um mínimo de bom senso tende a concordar contigo Rik. #pelofimdoviralatismo

Não perca as esperanças. Foi lendo um texto seu sobre o assunto há algum tempo que me convenci. E sempre que o assunto surge, passo adiante. Falando em americanos, estive na Guatemala recentemente, onde a infraestrutura para o turismo é mais modesta que a brasileira, com graves problemas de violência nas cidades, nas estradas e até nas trilhas para hiking, e é impressionante a quantidade de americanos gastando aos tubos por aqui. Qual é o segredo? Não podem ser só as horas de voo.

Comecei a ler o post por curiosidade, afinal te acompanho pelas maravilhosas dicas! Mas em resumo, isto tudo é mais um reflexo de no Brasil, as pessoas responsáveis por determinados assuntos, serem leigas sobre a área que assumem. E para piorar, mem se interessam por aprender e agarrar a oportunidade de fazerem um trabalho útil para o país, que na verdade devia ser a intenção de quem assume estes postos. Isto ocorre em todas áreas: turismo, saúde, educação, etc. Não desista de nos informar! Eh muito bom ouvir argumentos de pessoas que sabem o que estão dizendo!

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