Tracinho (minha crônica no Divirta-se do Estadão)

Hifens! Hifens! Hifens!

Quer viver protegido no Brasil? Há duas chances: ou você nasce tartaruga marinha, ou você nasce mangue. Nascendo tartaruga ou nascendo mangue, governos de todos os partidos e facções farão o possível para que você tenha uma vida longeva e sem sobressaltos. Nascendo gente, você já sabe como funciona.

Ainda bem que eu não nasci hífen. Se eu tivesse nascido hífen, já estaria praticamente extinto, a canetadas, desde a última reforma ortográfica. Não me olhe assim. Tenho pelo hífen o mesmo apreço que os biólogos tem pelo mangue. Em francês é chamado “traço de união”. Porque é exatamente isso que o hífen faz: une palavras sem deturpar as suas feições originais.

Acabou-se. Agora, sempre que for possível, a regra manda dobrar o “r” ou o “s” e mandar o hífen pras cucuias. Não passa um dia sem que apareça mais uma palavra horrível. Outro dia uma amiga que divulga uma orquestra sinfônica estava inconsolável por precisar escrever “cossolista”. No meu dicionário, “cossolista” é um maestro adjunto que sofre de alguma doença incurável.

Escrevi meu último guia de praias no final de 2008; quando fui ler as provas finais, a ortografia já estava adaptada à reforma que ainda viria. Todas as minhas praias parcialmente desertas viraram “semisselvagens”. No meu modo de ver as coisas, uma praia “semisselvagem” está cheia de entulho – um monte de “s” sobrando.

Um amigo sergipano estava pensando em criar roteiros ecológicos que ia batizar de “ecorrotas” – escritas desse jeito, porém, já nasceriam estragadas. Melhor não.

Só não mataram totalmente o hífen porque lhe devolveram uma ou outra palavra onde pode tratar de ter uma morte mais lenta e dolorida. Micro-ondas, por exemplo.

Claro que ninguém mais sabe que palavras são essas. A reforma ortográfica criou uma nova classe dominante: a classe que domina o hífen. São dois ou três em todo o mundo lusófono.

Já perdi a esperança de que a reforma seja revogada, mas não deixo de praticar a desobediência civil em todos os meus textos que não precisam passar por revisores. E em 2013, quando escrever do jeito antigo der cana, junto meu dossiê e vou pedir asilo ortográfico à França.

41 comentários

E eu que nasci em Buenos Aires e moro aqui há uns 14 anos: quando achei que estava aprendendo a escrever em português… mudaram todas as regras!!!!! Socorro!!!!!

Muito bom o texto! Até hoje ainda não sei a quem interessa tal mudança. Parece que não agrada nem aqui e nem lá (outros países de língua portuguesa)…

Riq, permita-me transcrever um trecho do livro A Língua Nacional (1921), do nosso conterrâneo João Ribeiro.
“Por vezes temos meditado nas atribulações que sofre o nosso homem de letras no uso da sua própria língua.
É por simples vaidade, e talvez por esnobismo, que um que outro mais ousado afeta desdém e indiferença pelas questões de gramática.
Não há inteira sinceridade nesse menosprezo. A pecha de incorreção é um percalço terrível.
Daí, o êxito relativo dessas seções jornalísticas que nos instruem nas fantasias do bem falar ou do bem escrever, e nos dizem como se fala e escreve em… Coimbra ou em Lisboa.
Os conselhos não são lidos com interesse; mas sempre se passa a vista por essas impertinências.
Enfim, convém inteirar-se do que contém os cartapácios do bom-tom, com agrado ou displicência.
Parece todavia incrível que a nossa Independência ainda conserve essa algema nos pulsos, e que a personalidade de americanos pague tributo à submissão das palavras”

A reforma a que se referem é aquela-que-devia-estar-por-aqui-também-e-que-só-nalguma-imprensa-se-lê-porque-NINGUÉM-lhe ligou nenhuma-e-passou-a-escrever-coisas-bizarras-como-exceção?
É que nem o Ministério da Educação… eu lecciono L Portuguesa e para este ano lectivo (Setembro-Junho 2011) nenhuma indicação nos foi dada.
A malta por aí está mais obediente ou quê?

    Por aqui a imprensa inteira aderiu no primeiro momento, Isabel. Quase todos os grupos têm interesse na reedição de livros didáticos, que ficaram desatualizados e precisam ser todos substituídos. O interesse econômico e corporativo prevaleceu sem absolutamente nenhum questionamento. Mas as Organizações da Bóia, com acento, continuarão enquanto for possível a defender as diferenças entre brazucas e tugas 🙂

    Felizmente no meio acadêmico a resistência é um pouco maior, mas acho que somos todos vistos como uns rebeldes sem causa… Até hoje não li nenhuma dissertação de mestrado ou tese de doutorado que esteja obedecendo às novas regras! Acho que só mesmo quando “der cadeia” que o pessoal vai aderir… 😉

    Que ótimo! Não sabia que havia resistência na academia! Quero links!!!! :mrgreen?

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