VnVintage: Globalize-se

Viaje na Viagem, 1998

Muita gente diz que eu precisava republicar o Viaje na Viagem derivado de árvores — mas a triste verdade é que, por mais que o livro tenha sido bem bacaninha em 1998, hoje quase nada se salvaria. O mundo mudou, eu mudei, você mudou, e analisando capítulo por capítulo quase todos iriam para o lixo.

Uma das exceções mais excepcionais é o capítulo que trata de viagens exóticas. O danadinho continua atual. Exceto por alguns detalhinhos bobos, claro — tipo: a Patagônia e a Croácia já são destinos mainstream. Vamos lá:

E nem adianta me mandar à Cochinchina, porque eu já fui.

(Momento Barsa: Cochinchina era o nome da extremidade meridional do Vietnã na época da colonização francesa. Nunca confunda, porém, a Cochinchina com a Conchichina. “Conchichina” só existe no dicionário de quem fala mendingo, largato e mortandela.)

Viajar para lugares esquisitos pode ser considerado o esporte radical do turismo. Quando você comenta com alguém que vai passar um pedacinho das suas férias na Birmânia, na Namíbia ou na Patagônia, é como se dissesse que vai fazer alpinismo sem corda, triatlo descalço ou surf no ar

Pouca gente se dá conta, mas esta é a alegria nº 1 do turismo exótico: é virtualmente nula a possibilidade de sua viagem ser estragada por qualquer espécie de olho gordo. Graças aos deuses das outras religiões, ninguém inveja uma viagem a um lugar que não faça parte do circuito Elizabeth Arden.

A seguir, alguns exemplos adaptados da vida real. Da minha vida real, pelo menos.

Você pode falar com todo o entusiasmo do mundo sobre as fotos que viu da arquitetura árabe medieval e das praias azuis-turquesa da costa norte de Zanzibar, que a única reação que você vai provocar é: pena.

O documentário sobre as locações onde filmaram “O Pequeno Buda”, que levou você a planejar uma viagem a Bhaktapur, no Nepal, vai levar seus melhores amigos no máximo a: achar que você está ficando doido.

Cada vez que você descrever as maravilhas que esperam você na Croácia — o patrimônio histórico da Croácia, a beleza do litoral da Croácia, os baixos preços da Croácia —, o sistema de tradução simultânea instalado no ouvido do seu interlocutor só vai conseguir entender: Bósnia, Bósnia, Bósnia.

Não, eu não acho que todo mundo deva fazer turismo exótico — assim como eu não acho que todo mundo tenha que fazer abdominais ou fumar charuto ou virar budista ou dormir de pijama. Mas nada justifica o tamanho do preconceito e o diâmetro da boca aberta do turista convencional para com as viagens do turista radical.

Em nome da classe, permita-me alguns esclarecimentos. Juro que o objetivo não é fazer com que você acabe de ler este capítulo e saia correndo para comprar uma passagem para a Índia. Quero apenas que você entenda as razões de todos os outros que vão acabar de ler este capítulo e sair correndo para comprar uma passagem para a Índia.

“Qual é a graça de visitar um lugar exótico?”

É incrível como brasileiro só considera exóticos os outros países — como se por aqui não tivéssemos, como diria?, uma forma toda peculiar de convivência em sociedade. Se a gente gosta — e vai dizer que não gosta! — de morar num lugar bagunçado, onde a pizza mais pedida é a de frango com catupiry, por que a gente não iria gostar de outros lugares bagunçados, onde pelo menos se comem coisas muito menos estranhas?

“Eu não viajo para um lugar mais pobre que o nosso.”

Aqui é que você se engana. Nenhuma pobreza é tão feia quanto a miséria nova-pobre das nossas grandes cidades. A pobreza dos lugares mais pobres que o nosso costuma ser uma pobreza ancestral, estabelecida, depurada; uma pobreza fotogênica, cinematográfica, às vezes cecil-b.-de-milleana, outras vezes sebastião-salgada. Os vilarejos e as pessoas podem ser pobres, mas o figurino é sofisticado, a arquitetura é intrigante, e o código de costumes tem uma riqueza que não caberia em nenhum manual de etiqueta ocidental. (Apague tudo isso quando pensar em cidades grandes: metrópole do Terceiro Mundo é feia de doer em qualquer continente.) Se você for ver, grande parte dos bairros mais impressionantes das cidades européias já foram um dia antros de pobreza; aqui mais pertinho, eu não duvido de que em 30 ou 50 anos a Rocinha seja tão visitada quanto o Pão de Açúcar. Nenhuma viagem proporciona tão intensamente a sensação de estar dentro de um filme como uma viagem a um país mais pobre que o nosso. Mas atenção: nunca é Spielberg. Sempre é documentário.

“E esses lugares lá têm estrutura para receber o turista!”

E como têm. Quando um lugar chega ao ponto de ser mencionado numa revista ou virar tema de um guia, mesmo que seja um guia dos pós-mochileiros da Lonely Planet (leia o capítulo 28, Guia dos guias), é porque já está completamente inserido no circuito turístico mundial — senão no circuitão, pelo menos no circuito exótico. Isso significa que um emaranhado de hotéis, pousadas, restaurantes e agências de turismo receptivo está à disposição do viajante — que, se bobear, corre o risco de ser colocado dentro de uma redoma e ter menos contato com a vida real do que teria no mundo desenvolvido. Novamente o Brasil não é parâmetro: enquanto aqui o turismo vive basicamente do mercado interno, a maioria dos outros países do Terceiro Mundo nem sonha em ter uma classe média viajante como a nossa, e por isso depende do turista estrangeiro — que jamais vai se dar ao trabalho de decorar duas frases sequer em tailandês ou aprender a escrever o nome do seu hotel em caracteres árabes. Com exceção dos motoristas de táxi (que são um povinho com DNA complicado em todo lugar do mundo), qualquer nativo que trate com estrangeiros vai ser capaz de fazer negócios rudimentares em inglês — assim como na língua de algum outro país que mande um fluxo significativo de turistas, como acontece com os alemães na Tailândia ou os italianos em Báli.

“Eu não vou para um lugar onde as coisas não funcionam.”

Isso, sim, é grave — e praticamente insolúvel. Começando do começo: para a grande maioria dos turistas, férias no exterior significa férias nos Estados Unidos. E por que vamos tanto aos Estados Unidos? Não é pela história. Não é pela arquitetura. Não é pela cultura. Vamos aos Estados Unidos porque os Estados Unidos funcionam. Vamos lá e passamos 10, 15, 30 dias encantados com o atendimento, com o serviço, com a qualidade, com os preços, com a possibilidade de reclamar e ser ouvidos. Os Estados Unidos funcionam tão bem, que chegam a comprometer a avaliação que muita gente faz da Europa, que teria tudo para ser trocentas vezes mais visitada. Pois bem: não dá para soltar uma pessoa viciada em Estados Unidos, sem claquete, num país exótico. Por definição, países exóticos não funcionam bem. Porque se funcionassem, não seriam países exóticos. Seriam assim como o Japão e a Coréia, que funcionam, mas que quase não têm mais cor local. Se você vai fazer uma viagem exótica, saiba que em um momento ou outro (às vezes, na maior parte do tempo) as coisas vão ser mais difíceis do que você gostaria. E prepare-se para achar graça disso — nem que seja semanas depois, na hora de colar as fotos no álbum.

“Eu não vou tirar férias para passar necessidade.”

Você tem toda a razão. É por isso que eu aproveito para requentar alguns conselhos do início do livro. Em primeiro lugar, planeje tudo direitinho, passo a passo. Se você puder, reserve com cada hotel o traslado da chegada (é sempre melhor ter um sujeito segurando uma plaquinha com o seu nome do que ser disputado por 2.451 motoristas de táxi represados do lado de fora do aeroporto). Siga a “Lei de Danuza”: quanto mais pobre o lugar, melhor precisa ser o hotel. Isso nem sempre significa o hotel mais caro: faça sua pesquisa, e veja se não existe nenhum hotel mais charmoso antes da faixa dos 5 estrelas padronizados. (Exceção: as grandes capitais do Sudeste Asiático, onde mesmo nos hotéis arquitetonicamente sem-graça o serviço é tão excepcional que torna memorável qualquer estada). Quase todos os destinos exóticos têm hotéis coloniais ou palácios convertidos em hotéis: hospedar-se num deles transforma completamente a sua experiência. (Reserve com muitissíssima antecedência.) Se você não tiver reservado um hotel onde seja um prazer ficar 24 horas, planeje demorar-se o mínimo possível na cidade: o segredo de visitar um lugar pobre é sair antes do encanto se acabar.

“Ah, mas é muito perigoso.”

É como eu li numa revista faz pouco tempo: “Na CNN sempre parece pior”. Minha primeira vez no sul da Itália foi no verão da Guerra do Golfo: os alemães todos ficaram em casa, e as praias e restaurante estavam às moscas e a mim. Voltei a Báli três meses depois do “fog” indonésio dominar o noticiário internacional, e fiquei em hotéis maravilhosos com meia casa. Eu estava lá na semana em que a rupia degringolou, e só fiquei sabendo que houve tumulto em Jakarta porque tinha um “Java Post” na recepção. Fui ao Angkor Wat seis meses depois do último golpe de estado no Camboja, e me senti mais seguro do que no caixa eletrônico da avenida Higienópolis. Fiz todo o roteiro dos hotéis coloniais do Sri Lanka, e se não fossem as medidas de segurança no aeroporto (check-in a dois quilômetros do prédio, com 4 horas de antecedência — atenção, números reais), não daria para dizer que eles estão em guerra civil com os separatistas tâmeis. De todas essas viagens, só a do Sri Lanka foi uma completa insanidade; nas outras, apenas me aproveitei do pânico induzido e dos cancelamentos infundados para viajar de maneira mais confortável. Desconfie sempre do “efeito arrastão”: raramente os acontecimentos são tão graves e com conseqüências tão generalizadas quando o noticiário da TV faz pensar.

A propósito, duas historinhas.

Uma: depois do acidente do vôo 104 da TAM, os fornecedores de copos romenos de minha loja mandaram um fax de Bucareste, perguntando se estava tudo bem com a gente.

Outra: andando pela praia em Trancoso, na direção sul, depois de meia hora você chega a um trecho de praia quase sempre deserto, mas que se reconhece fácil por ter uma árvore frondosa postada exatamente no meio da praia. À sombra da árvore fica de plantão uma índia guardando um enorme isopor com cerveja e água gelada para os passantes. Depois de passar milhares de vezes por ela e nunca comprar uma cervejinha sequer, um dia resolvi parar. E ela puxou papo. Falou de como adorava Trancoso. A calma de Trancoso. A tranqüilidade de Trancoso. E como não moraria nunca em São Paulo. Porque São Paulo é muito perigoso. “A gente vê na televisão: todo dia aquelas rebelião na cadeia! Não dá pra viver numa cidade assim não”.

(Na CNN sempre parece pior.)

Você está preparado? Teste. Não basta apenas vontade para se aventurar em uma viagem exótica. É preciso certeza. Veja aqui se você pode deixar de ser uma maria-viaja-com-as-outras.

1. Você está apaixonado pelo lugar onde quer ir? Não adianta estar apenas curioso. Viajar é uma brincadeira muito cara para quem quer apenas exercitar seu lado São Tomé. Você tem que estar suficientemente in love, antes, para poder gostar, de fato, durante.

2. Você se informou o bastante sobre o lugar? Não fique só com a idéia romântica. A distância entre a realidade e o que o lugar significa nos livros e filmes pode ser fatal para sua viagem. (Um efeito colateral interessante é que, depois que este lugar entra na sua vida, não sai nunca mais: você passa a observar o país no noticiário internacional como se estivesse recebendo notícias de parentes distantes.)

3. Você sabe o que vai ver em cada escala?
Parece muito stress antecipado, mas é fundamental para calcular, mesmo que seja por alto, o tempo de permanência em cada lugar. Só deixe tempo sobrando nos lugares onde você queira aproveitar o hotel.

4. Deu para reservar hotéis bacanas? Só fique em hotéis meia-boca se você tiver espírito de antropólogo, bandeirante, voluntário de ONG, ou se estiver fazendo um guia de viagens para antropólogos, bandeirantes e voluntários de ONG. Se os hotéis bacanas já estiverem lotados, considere adiar sua viagem para o ano que vem. (E se você ainda não estiver tão bacana quanto os hotéis, considere colocar a viagem em banho-maria por alguns anos — ou faça um curso de voluntário de ONG.)

5. Você adora a comida local? É mais importante até do que beber água mineral engarrafada e só comer frutas com casca. Se a comida exótica não for a primeira ou a segunda razão de você ter escolhido esse lugar exótico, não vá. Como eu já escrevi por aí, a comida “internacional” costuma ser intragável nos países com cozinhas locais de muita personalidade.

6. Se for sua primeira viagem exótica: você vai voltar pela sua cidade favorita? Programar os últimos dias no seu lugar favorito sempre é o melhor seguro anti-decepção de férias. E isso fica mais fácil quando se vai a um país sem vôos diretos do Brasil — como você vai ter que fazer uma conexão em algum lugar, que seja na cidade de que você mais gosta. Qualquer coisa, sempre é mais fácil antecipar a volta (aumentando os seus dias na sua cidade favorita) do que reemitir o bilhete com outro itinerário.

Só bata o martelo numa viagem exótica se você conseguir dizer “sim” a todas essas perguntas. (Precisando de inspiração, consulte os capítulos de Roteiros.)

Senão, faça coro com meu amigo Washington Olivetto. Que sempre diz: “Adoro que você vá a todos esses lugares esquisitos. Assim eu não preciso ir!”

19 comentários

Adorei este artigo! Estamos planejando uma viagem de 10 dias entre Bósnia e Montenegro! Ninguém entende, mas este artigo nos entendeu! Obrigada!

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