Checkpoint Charlie, 2016
Dia 3 de outubro a Alemanha comemorou 26 anos de reunificação. O Consulado Alemão de São Paulo convidou o Viaje na Viagem a participar da campanha #Breakingthewall #Likeagerman, pedindo que eu e vocês compartilhássemos alguma lembrança de viagem pela Alemanha que tivesse ajudado desconstruir a percepção que tínhamos do país.
Como eu sou vintage, vou trazer uma lembrança de 26 anos e poucos dias. Sim, eu estava em Berlim no finzinho de setembro de 1990, às vésperas da reunificação alemã. Não que eu soubesse disso antes de embarcar: o Muro de Berlim tinha caído em novembro de 1989 e desde então, na minha cabeça, as duas Alemanhas já tinham voltado a ser uma só. Mas o 3 de outubro marcaria a reunificação de fato, com a transferência da capital de Bonn para Berlim. A cidade estava superlotada, porque além dos visitantes para os eventos oficiais ainda havia uma multidão de forasteiros para correr a Maratona de Berlim -- que, pela primeira vez, incluiria a antiga Berlim Oriental no circuito (nos anos anteriores, uma paradinha no Checkpoint Charlie atrasaria um pouco os corredores, concorda?).
Pois bem: eu não apenas tinha marcado inadvertidamente uma viagem para Berlim às vésperas do fim de semana mais importante da cidade em décadas, como estava chegando sem hotel reservado. Lembre-se que estamos no ano 1990 a.E. (antes do E-mail), quando hotéis baratinhos não apareciam nos catálogos dos agentes de viagem e eram mais facilmente reserváveis nos postos de informações turísticas de estações de trem.
Não, naquele fim de semana hotéis baratinhos não seriam facilmente reserváveis no posto de informação turística em frente à Berlin Zoo, a estação central de Berlim Ocidental: todos os hotéis, caros ou baratos, já estavam esgotados. Quem chegava ao posto preenchia uma ficha e achava um canto do salão para se encostar até aparecer um quarto em casa particular -- um esquema que era normal naquela época nas capitais do Leste Europeu (na seqüência da viagem, a gente se hospedaria assim em Budapeste e Praga), mas que na Alemanha era acionado só em situações emergenciais, como aquela.
Esperamos quase duas horas até chamarem o nosso nome. Uma senhora de Charlottenburg -- o bairro mais bonito de Berlim Ocidental -- tinha aprovado a nossa ficha e podíamos ficar duas noites na sua casa, ao equivalente a 30 dólares a diária (não lembro o preço em marcos). Pegamos um táxi (mochileiros ma non troppo) e em quinze minutos uma Frau baixinha e sessentona abria a porta do seu apartamento térreo num predinho de uma rua arborizada e totalmente residencial.
(Não tenho foto, nem analógica, de nada disso. Naquele tempo não passava pela cabeça de ninguém desperdiçar filme fotogrando a rua em que ficou, o quarto em que dormiu, ou o café da manhã que tomou. Fotógrafos não-profissionais faziam dois tipos de foto em viagem: portrait e cartão-postal. Se desse para juntar as duas modalidades numa foto só -- portrait com cartão-postal ao fundo --, tanto melhor.)
Nossa anfitriã -- cujo nome esqueci, e por isso vou chamar de Frau Berliner -- explicou que era enfermeira aposentada e achava divertido receber visitantes, mas só alugava os quartos eventualmente. Desta vez, por causa da emergência na cidade, ia alugar os dois quartos e dormir na sala. Em princípio o quarto que nos cabia era o de hóspedes, mas quando chegaram os outros turistas sem-teto -- um casalzinho de namorados finlandeses recém-saídos das fraldas -- ela achou mais seguro nos dar o quarto principal.
Usamos o resto daquele primeiro dia para passear pela Ku'damm, a grande avenida do lado ocidental -- poucos anos depois ela perderia o status de artéria mais importante de Berlim, mas naquele momento isso era inimaginável. O segundo dia estava reservado para atravessar ao lado oriental. Acordamos cedo e o café da manhã -- das Frühstück -- já estava posto na mesa.
De volta ao Ocidente
Já era a minha terceira viagem à Alemanha -- a primeira tinha sido cinco anos antes, como mochileiro de verdade, me hospedando em albergue; a segunda tinha acontecido havia dois anos, quando estive pela primeira em Berlim, ainda dividida, numa pensãozinha fuleira -- mas eu nunca tinha sido apresentado a uma versão completa do fabuloso café da manhã alemão.
Para começar, de todos os cafés da manhã do mundo, o Frühstück é o que mais se aproxima do brasileiro. Tem fruta, tem suco, tem pães, tem queijo, tem frios, tem müsli, tem iogurte, tem ovo. Só que, com exceção das frutas (falta um papaiazinho!), todos os outros itens vêm com um senhor upgrade ao que estamos acostumados -- um mini café colonial de delicatessen.
Eu me lembro nitidamente de pensar que um café da manhã daqueles para dois já valia, na ponta do lápis, os 30 dólares da diária. Nos refestelamos e, ao levantar da mesa, quase envergonhados de tanto comer, fomos interceptados por Frau Berliner. Mas não comeram aber nichts, nada! Perguntou o que íamos fazer e não nos deixou arredar pé dali enquanto não montou dois sanduichinhos de um rico presunto com um queijo picante naquele pão redondinho e escuro, embrulhou em guardanapos e nos deu para merendar em Berlim Oriental.
Portão de Brandemburgo, 2014
Entramos no lado oriental ao largo do Checkpoint Charlie, onde eu tinha passado pela imigração dois anos antes. E atravessamos de volta ao lado ocidental pelo Portão de Brandemburgo, quase irreconhecível sem o Muro. Mas não me lembro onde comemos os sanduíches de Frau, nem onde comprei os caquinhos do Muro, provavelmente falsos, que trouxe de presentinho para a família e os amigos.
No dia seguinte, cometendo mais um erro de principiante, a gente pegaria um vôo cedíssimo, tipo 7 da manhã, para Budapeste. Se madrugar já não fosse um perrengue suficiente (seja lá qual fosse a palavra que eu usava para dizer 'perrengue' naquela época), a gente ainda ia perder o Frühstück de Frau Berliner.
Na saída, porém, encontramos um farnelzinho com um bilhete e quatro sanduichinhos da Frau e duas bananas -- devidamente devorados a caminho do aeroporto Schönefeld, de onde sairia nosso vôo da Malév.
Frühstück pra viagem. Vielen Dank, Frau Berliner!
E você? Que lembrança de viagem mudou a sua percepção da Alemanha? Conta pra gente!
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