Belém: o Círio de um não-devoto
O Círio — todo mundo vai te repetir isso — é o Natal dos paraenses. Só que, ao contrário do “nosso” Natal, o Círio continua um evento de caráter totalmente religioso
. No Natal, Jesus Cristo há muito tempo foi destronado por Papai Noel — mas no Círio tudo e mais um pouco gira em torno de Nossa Senhora de Nazaré. Só vi tanta devoção mariana assim no México, onde quem manda é a Virgem de Guadalupe.
A propósito: devoção é a palavra que define o Círio.
Até mesmo ateus abrem uma exceção à santinha e parecem confiar no poder da imagem itinerante. As vedetes da procissão principal (depois da santa na berlinda, claro) são os promesseiros, homens e mulheres que vêm pagar promessas à Naza.
Os mais corajosos prometeram fazer o trajeto agarrados a uma corda — que, por não ter espaço para todos, vira um cabo (santo) de guerra.
O que pode fazer um não-devoto numa festa de tamanha religiosidade — além, é claro, de ficar boquiaberto com o tamanho e o fervor da multidão nas ruas?
Apesar de essencialmente religioso, o Círio não vive só de rituais católicos. Pra começo de conversa, em outubro Belém está em festa: as pessoas saem mais e ficam na rua até mais tarde.
E depois, mesmo durante o Círio, é possível aproveitar uma tímida agenda profana. Com todo respeito — ou não estaríamos em Belém. Veja como eu aproveitei o Círio sem atrapalhar o caminho da Virgem peregrina.
Reconhecendo o terreno
Como eu desconfiava que não teria adrenalina (eufemismo para coragem) para enfrentar a procissão, tratei de percorrer a avenida Nazaré no início da semana. Já estavam lá os altares super-elaborados e os cartazes de empresas saudando a santinha.
Fui a pé até a Basílica de Nossa Senhora de Nazaré, construída próxima ao igarapé onde um pescador teria achado a imagem original, lá por 1700.
Reza (ops) a tradição que o pescador teria improvisado um altar para a imagem em sua casa, mas que a santinha sempre dava um jeito de reaparecer no lugar em que tinha sido achada. Para respeitar a vontade da santa, construiu uma capela no lugar. A basílica é só o upgrade…
Quando você for, aproveite que o Parque Emílio Goeldi está a pouco mais de três quadras e dê um pulinho lá: é um belo jardim amazônico, com pássaros e… três onças-pintadas numa jaula.
Terruá Pará
Tive sorte: a semana do Círio foi o gancho para, na quarta-feira, realizarem o espetáculo de encerramento da turnê 2012 do Terruá Pará, um show-vitrine da diversidade da música paraense.
De graça, num palco montado na praça da prefeitura (e com espaço para se mexer e até dançar), se apresentaram representantes da MPB ao tecnobrega, passando por carimbó e por surpresas como a Orquestra de Violoncelistas da Amazônia, composta por garotos que tocam música pop.
Pude ouvir a grande Dona Onete, feliz proprietária de uma voz que lembra Elza Soares;Lia Sophia, talento emergente de primeira; e o fenômeno Gaby Amarantos, que fechou a noite (em todos os sentidos).
Não garanto que a festa se repita ano que vem, mas se você for, não custa ficar de olho no noticiário.
Arraial do Pavulagem
Entre sexta e domingo, a imagem de Nossa Senhora de Nazaré enfrenta um pinga-pinga mais intenso que de brasileiro em primeira viagem pela Europa. Na sexta ela vai em procissão rodoviária até Ananindeua, na Grande Belém, onde pernoita.
Sábado de madrugada é levada ao porto de Icoaraci, de onde volta à região das docas de Belém numa belíssima procissão fluvial. Ao desembarcar, às 11 da manhã — recebida, por determinação da Constituição estadual, com honras de chefe de estado — a santinha é escoltada em moto-romaria até o Colégio Gentil Bittencourt, onde ficará até o início da noite.
A multidão de praxe se aglomera na parte baixa da avenida Presidente Vargas esperando a passagem da imagem desembarcada.
Uma pequena parte do público, porém, aproveitará a energia do avistamento da Virgem para prosseguir num cortejo um pouco mais divertido, em direção à Cidade Velha. É o Arrastão do Arraial do Pavulagem, comandado por um conjunto de músicos, dançarinos e brincantes.
Arrastão do Arraial do Pavulagem
O desfile começa com o hino da Senhora de Nazaré e já envereda por ritmos paraenses.
Arrastão do Arraial do Pavulagem
Na passagem pelo Ver-o-Peso o povo ganha um banho de cheiro.
O cortejo termina na Praça do Carmo, preparada com um palco montado, barracas de comida e a tradicional feira de brinquedos de miriti trazidos por romeiros de Abaetetuba.
Feira de artesanato de miriti na Praça do Carmo
E o show come solto a tarde inteira.
Festa da Chiquita
Recapitulando: no início da noite de sábado, a imagem de Nossa Senhora de Nazaré, que tinha sido escoltada pelos motoqueiros até o Colégio Gentil Bittencourt, é levada em procissão a pé até a Catedral de Belém, na Cidade Velha. A procissão noturna é chamada de Trasladação, e é um Círio em sentido contrário
. O auge do programa oficial é quando a imagem passa pela Praça dos Estivadores, em frente às docas, acionando um show de fogos de artifício que não perde para nenhum Réveillon (dê uma espiadinha aqui).
Assim que os fogos terminam e os romeiros continuam com a Virgem até a Catedral, os holofotes se acendem num palco em frente ao Theatro da Paz, por onde a santinha tinha passado meia hora antes. É quando começa a Festa da Chiquita, o mais profano dos eventos paralelos do Círio.
Realizada ininterruptamente há 34 anos, a Festa da Chiquita é tida como “a primeira parada gay do Brasil”. Originalmente era uma festa marginal, que acontecia depois de todo mundo ter ido para casa. Hoje virou uma instituição. É um evento engraçado: um grande show de boate gay das antigas, com caricatas, dubladoras e go go boys, com o Theatro da Paz ao fundo e Nazaré de olho…
Nos últimos anos, este pólo profano da vigília do Círio ganhou companhia de mais tribos. Ali perto, ainda na praça do teatro, se realizam o Cirial (onde rola rap e reggae) e o Círio do Metal (para metaleiros).
Mas não pude ficar muito, porque no dia seguinte era preciso madrugar.
No Círio: a saída da berlinda
“Quer fotografar? Vá cedinho lá pra Catedral, tipo 5 da manhã, que você vai ter espaço e sossego”. Se eu tivesse seguido esse conselho, do Belenâmbulo, talvez tivesse me dado bem. Mas acabei acordando às 5, e só cheguei à Catedral às 15 pras 6. Estava assim, ó:
Resolvi recuar. Achei um lugar vago na vizinha praça Dom Pedro II, na beira de um laguinho. O lago me proporcionaria a distância suficiente para fotografar a santa com a tele, sem nenhuma cabeça exatamente na minha frente.
Praça Dom Pedro II
Praça Dom Pedro II
A missa, transmitida pelo sistema de alto-falantes da rua, começou às 6. Às 7 o arcebispo pôs a santa na berlinda (o povo é tão respeitoso que ainda não inventou o termo nazaremóvel) para ser transportada para o lugar para onde, se bobeassem, ela voltaria por conta própria.
Quando avista Nazaré, a multidão aplaude; em seguida, ergue as mãos, grita e chora. E foi assim que a Virgem fez uma apariçãozinha particular para a minha zoom.
Atrás da berlinda viria a corda, o povo e toda aquela fé. Dois milhões de pessoas, um carnaval inteiro de Salvador atrás de uma berlinda só. Minha câmera e meu celular me convenceram a ir para o hotel ver o resto da procissão pela TV.
Mas não descarto um dia voltar para ficar lá no meio. Só que daí vou sem nada no bolso. E com uma promessa para pagar
Agradeço ao querido Lafayette Nunes pelas dicas e informações de cocheira alcançadas.
Comentários
Parabéns pelo seu relato! Completo, instigante e estimulador! Sou de São Luís do Maranhão e visito o Círio de Nazaré desde 2003 ininterruptamente e cada dia mais fico devoto da Santinha! Abs
Que relato incrível! Muito obrigado por lembrar dos profanos e não-cristãos aqui. Estava procurando justamente informações para curtir o Círio de uma forma não religiosa. Estou planejando meu roteiro para Belém agora em outubro de 2023 e esse relato me inspirou bastante. Se vocês tiverem mais dicas de passeios ou eventos que valem a visita, agradeceria muito! Mais uma vez, obrigado!